sexta-feira, 23 de junho de 2023

uma primavera de saudades








para você, meu baby.  


uma flor é um corpo
e um corpo pode ser

sim

uma flor

desde aquele tempo
eu sempre cultivo em mim
a lembrança do teu lírio-corpo

e não sou capaz de fazer cair
fogo
nestas raízes de flor que plantaste
sem muito cuidado
em meu breve corpo

todas as manhãs
eu dou de beber à terra da lembrança
rego a tua face de hortência
aliso os teus dedos de pétalas
cuido
de um jardim inteiro
de saudades
e lembranças-sem-vergonha

um corpo
pode ser, sim
muitas coisas

mas o teu corpo
tuas nádegas-jasmins
teus cabelos e teus pêlos
pretos e enrolados
como cipós
crescem em torno de mim

e não me sufocam
nem me deixam cansado
são névoa
e são flores
de laranjeira
nos meus dias todos

em que bebo chá
piso a vida
cresço
e não me esqueço

um corpo

(o teu)

pode ser

sim

uma flor

uma primavera inteira de saudades. 

borboleta amarela
























nesta manhã
quando tudo era névoa e perda
uma borboleta
pousou
na minha omoplata esquerda

sim, uma borboleta amarela
daquelas de jardim
de quando o tempo é morno
e as nuvens flutuam em torvelinho

e onde antes havia uma cratera
uma ferida exposta
sangue coalhado 
lágrima e dor
nasceu uma flor

e a borboleta talvez retorne amanhã
ou outro dia 

já que foi ela
alma de aquarela
que trouxera
em suas asas
a cura
o pólen
a seiva
a semente 
ou o esperma

a fantasia

que fez renascer em mim a alegria

e me despertou de toda afasia. 



sábado, 25 de janeiro de 2020

"Letreiro", de Miguel Torga.



Miguel Torga em "Orfeu Rebelde" (1958).

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Da nossa janela.

Da nossa janela, o sol, a chuva,
a muda de kalanchoe:

a luz das manhãs, a paz de mel
dos teus beijos
de céu,
jardins de cotidiano, lençóis que são o mar do sul,
uma ilha
secreta
em que estrelas do mar são como casas
e o vento não derruba, só constrói. 


sábado, 1 de dezembro de 2018

Vejo as paisagens sonhadas... (Bernardo Soares)


Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço. Se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa.

De alguém alguém disse que para ele as figuras dos sonhos tinham o mesmo relevo e recorte que as figuras da vida. Para mim, embora compreendesse que se me aplicasse frase semelhante, não a aceitaria. As figuras dos sonhos não são para mim iguais às da vida. São paralelas. Cada vida — a dos sonhos e a do mundo — tem uma realidade igual e própria, mas diferente. Como as coisas próximas e as coisas remotas. As figuras dos sonhos estão mais próximas de mim, mas (…)


Excerto do ''Livro do Desassossego'', de Bernardo Soares.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Morte do leiteiro - Carlos Drummond de Andrade


Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade



quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O Álvaro gosta muito (poema de Cesariny)


Há poucos dias descobri um poema do Mário Cesariny que me encantou e surpreendeu. Trata-se de uma leitura homoerótica e, de algum modo, paródica da relação dos heterônimos de Fernando Pessoa, escritor que exerceu grande influencia sobre os versos de Cesariny. Divido, portanto, o texto com vocês:

O ÁLVARO GOSTA MUITO

O Álvaro gosta muito de levar no cu
O Alberto nem por isso
O Ricardo dá-lhe mais para ir
O Fernando emociona-se e não consegue acabar.

O Campos
Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia
Ficavam-lhe os olhos brancos
E não falava, mordia. O Alberto
É mais por causa da fotografia
Das árvores altas nos montes perto
Quando passam rapazes
O que nem sempre sucedia.

O Fernando o seu maior desejo desde adulto
(Mas já na tenra idade lhe provia)
Era ver os hètèros a foder uns com os outros
Pela seguinte ordem e teoria:
O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão
Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-
-Se no Alberto até à base
E com algum incómodo o Alberto erguia
Nos pulsos a ordem da kabalia
Tentando passá-la ao Álvaro
Que enroscado no Search mordia mordia
E a mais não dava atenção.
O Search tentava
Apanhar o membro do Bernardo
Que crescia sem parança direcção espaço
E era o que mais avultava na dança
Das pernas do maço de heteronomia
A que aliás o Search era um pouco emprestado
Como de ajuda externa (de janela ao lado)
Àquela endemonia
Hoje em dia moderna e caso arrumado.

Formado o quadrado
Era quando o Aleyster Crowley aparecia.
«Iô Pan! Iô Pã!», dizia,
E era felatio para todos
e pão de ló molhado em malvasia.


***

Este poema foi retirado do site https://www.escritas.org, mas recomendamos o livro Poesia, da editora Assírio Alvim, publicado em 2017, em Portugal.

domingo, 22 de julho de 2018

É você que tem
Os olhos tão gigantes
E a boca tão gostosa

...



en la noche
estrellada
el alacrón
indicaba
el camiño torto
de la estrella roja
qué ilumina
mi corazón perpetuo







en la noche
oscura
de muchas palabras
y pocas caras
nada tiene más sentido
que una estrella

que cae