sábado, 6 de dezembro de 2014

MAPA DO CÉU

abro os olhos, é noite
a luz branca da lua toca os cantos mais escondidos da terra
lugares escuros onde quase ninguém vai, estalos de beijos
o meu braço esquerdo está iluminado
a mão aberta erguida me faz pensar num lírio

muito abaixo, quase tocando o mar, flutua Sírius
a estrela mais azul da galáxia
sinto-me importante por identificá-la
ela que os egípcios chamavam de mãe
Ísis, a mãe dos homens, protetora dos escravos e oprimidos

eu sou um oprimido, Ísis, canis majoris
olho agora para ti, para o teu brilho
quero paz e um lugar feliz, esperança
de um lugar para amar sem ser julgado, um homem
dá-me um homem, Ísis, de olhos esfíngicos e maternos, como os teus

por fim, é com ele que me confronto
o portador do mundo invisível, aquele que mede nossos corações
o juiz, deus da noite e da verdade, Osíris de olhos luminosos
que aponta para longe, fala do meu passado e do meu destino
constelação maior a que os gregos chamavam Orionte

fim do encanto
quis o deus que eu acordasse, uma grande nuvem cobriu metade do céu
um cisco caiu no meu olho, um asteroide da nuvem de Oort
ainda é noite, não vai chover como vi no telejornal
Nibiru ainda está longe, nada faz muito sentido, posso escrever em paz


domingo, 30 de novembro de 2014



ver
Órion no céu

é lembrar de um tempo
em que eu andava só
por Coimbra
subia ladeiras
descia escadas
atravessava as ruas sem olhar para os lados


na esperança de que o amor
me atropelasse
novamente
o amor que eu havia perdido,
visto ir embora tão rápido, numa escala no Porto,
tchau e nunca mais!


olhar para o céu hoje
e ver as mesmas estrelas brilhando,
ainda de que cabeça para baixo,
é ter certeza de que a terra gira
e nós também,
como giramos...

eu não sou o mesmo
já não choro nem uivo de amor
durmo tranquilamente, bebo chá
passeio sozinho com o coração vazio
cheio de paz
escrevo versos
não me emociono
acaricio meu cão

ah!
ver Órion gigante
no céu hoje
nesta noite de novembro
do hemisfério sul

é sentir, num sopro noturno, muito de leve,
a mesma dor
que eu sentia quando subia
as escadas de Coimbra
e pedia
como criança
que tu voltasses!

hoje já não peço nada

vejo Órion
brilhante no céu
como antes eu via

e sorrio
feliz,

as coisas passam, o amor se perde
na vida
como cisco

só nos restam as estrelas
inconfundíveis
lampiões
setas
que clareiam e rememoram
caminhos, o mapa

do nosso ser

ver
Órion no céu
hoje
foi como reacender 
(refazer)
um caminho
que há muito havia esquecido.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

É noite,
meu olhos, acostumados ao escuro do mundo,
procuram no entanto
uma luz,
fria mas viva.

Lembrei do mar
que vi nos teus olhos naque dia.

O meu coração é uma nau lusitana,
meu corpo uma espada erguida,
minha vida uma Cruz.

Em qual destas ilhas
estás tu, Calisto?

Tenho cá, nos bolsos,
umas violetas, são tuas.
Na boca, uns beijos pra te dar.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

OLHAR ETÉREO

enfim,
eu só queria que este meu olhar etéreo, sabe,
me levasse para lá


para o éter,
para além das nuvens
algum planeta onde haja só fluído, paz
e sorrisos sinceros

o meu olhar etéreo
que fita o impossível
que ainda chora as asas que perdi
num passado distante, relativamente esquecido
que sempre volta, lapsos no ônibus,
onda do mar, me vi n'outra vida

este olhar, sabe,
este olhar etéreo e vacilante,
é, na verdade, a encarnação da minha dor,
que é a dor dos famintos,
das meninos e meninas
explorados na China e em qualquer lugar
onde haja gente assim, sofrendo,
o olhar etéreo e triste dos homens e mulheres
cujas mãos são só feridas,
cujo sonho é uma saída
e a vida nunca lhes sequer
deu um copo decente de água limpa,
o olhar daqueles que têm olhos
mas nunca viram
o amor passar diante da tela,
da janela,
deitar-se na cama, nu
e aberto para um beijo,
o amor genuíno, puro, amor nuvem,
o amor, sabe, de que nos falou o Cristo...

então, sabe,
o meu olhar de nuvem pássaro mente
de vapor e de água azulada das cataratas de Iguaçu,
o meu olhar árvore que balança no outono
folhas amarelas,
papel dentro da gaveta, cartas que nunca foram enviadas,
o meu olhar
saudade
fado português
palavra sem tradução

é a minha maior prisão

mas é ele
n'ele
que sonho,
como não poderia deixar de ser,
gaivota,

a minha provável libertação,
utopia.


(C. Berndt) 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Suplício

doce suplício
o de amar alguém assim,

grande suplício amar alguém que não existe,

tolo suplício amar quem  nos deu tão frágil guarida
e jamais dirá com a boca aberta em alegria
e com os dentes à mostra:
''volta, amor''!

suplício
que só me é útil por aqui,
nos escuros corredores da poesia,
nestes quartos desertos por onde me perco,
grito,
e esqueço um pouco de mim,

onde costuro, então, nuvens, invernos
e invento lembranças,

doce suplício
doce,
adorar quem só nos deu a solidão do mar
e as lágrimas todas
de um país que só me ensinou a amar,


doce suplício o de te amar, Portugal,
por que não me deste asas suficientes
para te reencontrar?


A semeadura é livre...


Cá neste mundo,

hoje ando em busca de luz,

por estes jardins,
quero semear lírios de paz,
crisântemos de reconciliação
e amor genuíno em forma de jasmins,


pois só assim é possível
desembaraçar os cipós,
livrar-se dos espinhos
e compensar as sementes duras
de sofrimento e mágoa
plantadas por mim
em meu passado de incompreensão,

o caminho para a libertação,
então,
é a semeadura do bem,

a caridade de puro e elevado coração,
que nos dará as asas
tantas vezes recusadas

e nos levará, enfim,
para mais perto de Deus.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Porque 20 de outubro é dia do poeta:


SER POETA 


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!


(Florbela Espanca in ''Charneca em Flor'')

sábado, 18 de outubro de 2014

MEDO

é da noite que mais tenho medo

os fantasmas os rostos
o passado inteiro com seus dentes caninos mais afiados
o balançar sombrio e repentino da cortina escura, cheia de poeira
as frestas na janela
a coruja poisada no garapuvu piando como se sentisse dor,
a minha dor

tudo isso, sabe,
é que me mete medo

me dá uma vontade doida e infantil
de meter a cabeça de baixo do travesseiro
e chamar pela minha mãe,
que a essa hora já dorme o seu sono tranquilo de mãe

é um medo de olhar sem medo
encarar frio e corajosamente
o que em mim ainda pia, lateja, goteja mágoa,
traz saudade ou ódio,
ou às vezes simples ânsia,
não me pergunte de quê, é uma ânsia ânsia,
indescritível ânsia
que a mim faz todo sentido

veja bem, nem sei bem
do que é que tenho medo
mas conheço bem o que amo
e o que abomino,
conheço bem a cara que pintei
para mostrar e sonhar as coisas belas
e esquecer e denunciar as terríveis

mas pronto,
tenho medo é de não ser livre,
eu acho,
mas quem é livre mesmo, afinal?

a coruja parda é mais livre do que eu, certamente!
quais dores dormem em seu peito sensível coberto de penas?

dona coruja dos olhos de lua,
estou cheio de pena,
de medo
e de algum amor para dar também,

amor para dar, entrega garantida,
ao homem que passar e me encantar
com suas nádegas gestos humildade

não tens pena de mim, das minhas dores,
deste homem que me amará e um dia
me dirá adeus?

ou serei eu, de novo, que me irei embora?

é da noite,
de todas essas sombras confusas e dissimuladas,
desses pios, dessas palavras que não valem nada,
dessa vontade de traduzir desejo sexo amor saudade dor e tudo
com alguns versos,
que mais tenho medo!

tenho medo de mim
do que em mim vive
do que sobrevive aos ácidos  dos dias
do que morde encanta liberta
e assusta

sobretudo quando termino de escrever um poema destes,
puro nonsense cheio de sentido!

tenho medo medo

é de mim, dona coruja dos olhos inocentes,
que mais tenho medo!


sábado, 11 de outubro de 2014

fim de tarde,

o sol como um menino tímido
de cabelo amarelo
escondido atrás do Cambirela,


rua escura e vazia,
lajotas tortas,
caminho feito de pedras e de um perpétuo ontem,

uma garça que voa pr'a não sei onde,
as suas penas brancas
foram a única bandeira de paz
que vi neste dia
de pouco sorriso.

domingo, 21 de setembro de 2014

IMPRESSÕES I

Estou na biblioteca. Noto que as pessoas entram no recinto e dirigem-se quase todas a um canto, onde estão umas máquinas pretas, leitoras de códigos de barras, computadores modernos, semi-inteligentes, máquinas – chamemo-las assim, apenas de  máquinas. Nestas engenhocas, isto é, nestas máquinas, os estudantes inserem a sua password, a sua senha e podem, prontamente, tanto devolver quanto requisitar livros. Eu, no entanto, faço parte da meia dúzia de etês que insiste no passado,  no velho hábito de ir à mesa onde estão umas senhorinhas de mãos ágeis e sorriso frouxo, prontas para receber as devoluções e realizar novos empréstimos. Há quem diga que não há nenhuma diferença entre o trabalho das máquinas e o trabalho realizado pelas  senhorinhas da biblioteca. Contudo, eu prefiro, sim, o contato humano, os olhos vivos, as palavras de educação, ainda que ditas por mero costume, o ''bom dia'' que as máquinas nunca me darão. 

Tempestuo.

nuvens brancas
largas e fortes,
extensa cordilheira de montanhas
suspensa no céu,
lembram-me o teu corpo
e eu não sei dizer porque,

o teu branco corpo,
delicado,
pequeno
e tantas vezes fugidio,
que tanto amei beijei penetrei,

que hoje
me é tão distante,
mais do que essa montanha de nuvens
vulcão adormecido de água em vapor
que logo descerá à terra,
talvez na forma de uma tempestade,
talvez como uma mansa e dolorida garoa de primavera,

a minha cabeça se enche de nuvens
e os meus olhos de água do mar,
tempestuo sozinho,
vou pr'a casa,
as lembranças se misturam, são espuma
ou qualquer coisa informe, escapam

o teu corpo,
o teu rosto,
o meu amor,
tudo isto está no céu, naquela montanha gigante
de nuvens de algodão doce
que talvez se torne
água do Atlântico
e vá te visitar
num dia em que estiveres sozinho
a ver o sol se pôr na Figueira da Foz,

vou pr'a casa,
tempestuo,
queria ser nuvem,
asa,
ar, vento,
Deus,
teu.



(C. Berndt)

Justo a mim coube ser eu.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AMAR (Carlos Drummond de Andrade)




Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o amar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Carlos Drummond de Andrade)



Dead Combo - Esse Olhar Que Era Só Teu

Linda melodia, que me fez repetir e relembrar, com outro tom, aqueles versos tão lusitanos: ''Ó mar salgado....''


quinta-feira, 24 de julho de 2014

teu rosto sombrio
me assombra

ainda

e essas sombras todas
que o vento sul
traz de tão longe

silvos nuvens desfeitas
dedos frios de ar
brotados de calotas da remota Antártida

entram-me pela blusa
tocam sem cuidado
o meu corpo breve
e a minha delicadeza exposta

roda dos ventos
de braços abertos,
os mamilos arrepiados,
onde se partem direções
leste oste sul

e norte, para onde tu sempre voltas
os teus olhos,
solidão!


( C. Berndt) 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Épigraphe pour un livre condamné

Lecteur paisible et bucolique,
Sobre et naïf homme de bien,
Jette ce livre saturnien,
Orgiaque et mélancolique.

Si tu n'as fait ta rhétorique
Chez Satan, le rusé doyen,
Jette ! tu n'y comprendrais rien,
Ou tu me croirais hystérique.

Mais si, sans se laisser charmer,
Ton oeil sait plonger dans les gouffres,
Lis-moi, pour apprendre à m'aimer ;

Ame curieuse qui souffres
Et vas cherchant ton paradis,
Plains-moi !... sinon, je te maudis !

***

Charles Baudelaire 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(Mário Cesariny, em "Pena Capital")

sexta-feira, 21 de março de 2014

Morfeu.

vem, Morfeu,
deita sobre o corpo meu
deixa-me sentir o teu peso
teus braços quentes
teu hálito de flor anestésico.

vem,
penetra-me,
penetra-me com força
e sem pena
com teu falo mágico
para que eu possa gemer
descontraindo vértebras
e mágoas

põe-me a dormir, Morfeu,
transforma-me nisso,
no que tu és:
esquecimento.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Poema sem título de Álvaro de Campos.



Hoje estou triste como um barco negro ao sol.
Minha alegria foi-se embora com as malas.
Meu coração anda por casa do silêncios
Abrindo as portas e espreitando para os quartos.
E tudo isto, que não tem nenhum sentido,
É o sentindo essencial da minha vida…

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto…
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incomoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no meu peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções trites, como as ruas estreitas quando chove.

Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores,
Quaisquer flores, logo que sejam muitas…
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores.
Nem isso… Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores…
Seja essas as flores que me deis…

Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança
Com a cabeça baixa encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.

O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis, e aparar Lápis, e gente que os apara à janela é tão estranho
É tão fantástico que estas cousas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dores de cabeça.

A flor caída no chão.
A flor murcha(rosa branca amarelecendo)
Caída no chão…
Qual é o sentido da vida
(que sentido tem a vida?)

***

Álvaro de Campos

terça-feira, 11 de março de 2014

Saudades eu não as quero

Bateram,
Fui abrir era a saudade
que vinha para falar-me a teu respeito,
Entrou com um sorriso de maldade,
Depois sentou-se à beira do meu leito
e quis que eu lhe contasse só a metade
das dores que trago dentro do meu peito...



Este texto trata-se, na verdade, de um poema escrito por Afonso Lopes Vieira (1878 - 1946), poeta português, nascido na região de Leiria. O poema pode ser encontrado no livro ''Saudades Localidade: Não Quero ter''.

quinta-feira, 6 de março de 2014

ENCANTAMENTO

quem me dera ter as asas
das palavras

vento andorinha céu

para que
como num encantamento lúdico

pudesse
fugir e brincar de ser
outra coisa
que não eu
lágrima
chão

quarta-feira, 5 de março de 2014

CANÇÃO ( Allen Ginsberg)

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano —

sai para fora do coração
ardendo de pureza —

pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor —
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
— não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

— deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho —

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

--- Texto extraído do livro "Uivo: Kadish e outros poemas" (L&PM, 2010). Tradução de Claudio Willer.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ALÉM-MAR

( ao Pedro R.) 

sobre a janela
no parapeito
sonhávamos o mundo
as estrelas brilhavam
como nunca mais as vi brilhar
e a noite tinha uma mania doce
de dançar
de parecer infinita
de crescer dentro da gente
feito uma rede brilhante de versos

o fim estava tão distante
que nem dávamos por ele
o céu da Ibéria era grande demais

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Além-dor

não sei que bicho me mordeu,
nem que feitiçaria me tocou
- é sempre a mesma vontade magoada de tecer versos.

pequenos versos de algodão
-retalhos-
costurados à força numa manta roxa que nunca
encontra um fim.

Manta esta que é meu capote,
meu guarda-chuva
e guarda-frio.
Meu passaporte às terras de Além-dor.

14/09/2012
«deixa doer»
- um dia isso vira balão e sobe.
Sobe e se perde no tempo, no céu-turquesa da memória.

Por ora,
mete tudo numa xícara de chá
e bebe como se fosse camomila.


29/11/2012

A FACE DE DEUS

Olhar a face de quem se ama é como olhar a face de Deus
- e diria eu na mais sincera heresia: a face de quem se ama é a face de Deus.

Ainda que somente aos nossos olhos,
o amor - o nosso amor - é sempre o maior
e o mais bonito e o mais perfeito dos amores imperfeitos
- amar nunca é suficiente e não existe sob as estrelas do firmamento
 um único  amor que seja isso: perfeito.
Mas ainda assim,
ele me parece lindo,
embora eu saiba o calvário que cruzei
e a cruz na qual serei pregado no fim do caminho
 - como deus foi.
Deus tolo e impotente pregado por Amor!
Valeu a pena dar o sangue por amor?

Amar é sempre pouco e impossível,
o outro nunca está dentro da gente,
nunca nos pertence e nem esquece de si
porque nos ama, ou diz amar.
A dúvida aqui - a minha inconsolável dúvida-
é a seguinte: o que é o amor?
Não seria ele apenas uma doce e ilusória criação?
Um sonho?
Um poema sonhado mas nunca encontrado?
Uma ideia-pensamento? Nuvem de poeira?
Tempestade?
Ou seria medo da morte?
Pior: medo da morte e da solidão.
Seria, então, somente medo?
Ecos-fantasmas e egoísmo?

Não sei, não sei, não sei.

Sei
que sou já um vaso transbordante de dúvidas,
um cálice rachado, por onde fogem o sangue - os versos.

Ai, dúvidas ensopadas, salgadas... que não me deixam dormir!
Não durmo! E vocês?
O amor,
as ideias, o sonho e as vontades vos deixam dormir?
Não há  camomila que me dê jeito
nem lua nem canção que abrande o pensamento...
Nem verso puro que me mate,
que me enlouqueça por completo,
que me encha de esquecimento!

Sou eu só uma Saudade que morre e morde. Morde.
Morde-me de raiva, de vontade, de querer e não querer,
de achar belo o que no instante seguinte amaldiçoo.
Ai de mim! Ai do meu amor e dos meus sonhos!
Ai de todos esses fantasmas e lembranças!
Ai de Narciso e desta face!
Esta face... esta face... a mais linda e encantadora face.
Daria toda a minha poesia se pudesse tê-la novamente,
olhando-me deitado no travesseiro,
procurando-me nos olhos...
Isso é só vontade?
Orgulho pela perda?
Ou é isso que chamam de Amor?
Amor?
Amor... Volta. Ainda que miragem,
volta.

*

- Não, não é amor. É só o vento lá fora.
Suspiro aliviado, mas ainda perturbado:
que amor,
que amor é esse que não me deixa?
Solto os meus olhos no infinito escuro
 e vejo estrelas cintilantes
que só me cantam torturas, fados... nem elas, nem elas
são tão belas quanto a face daquele que Amei.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Dos poemas perdidos, aqueles que escrevo e esqueço nos versos de extratos bancários:

na estação
somos todos um mar
de gente sem rosto
sem vidas
sem ontem
tudo são pressas
o que importa
são os horários dos trens
que partem atrasados

ninguém espera o amor
na estação

ele não descerá do trem
que chega às duas
não matará com um beijo
a minha amargura.
garoto sorridente
dos olhos de mar
por muito pouco
não toquei sua boca
e beijei seu corpo
os seus cabelos ondulados
ondulam agora
um outro corpo
uma outra praia
que não minha cama
Hoje, desenhei a distância


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Outra das minhas traduções:

Deito a cabeça
para fora da janela, e percebo
o quanto deseja cortá-la
a lâmina fria do vento.

Nesta guilhotina
invisível, eu pus
a cabeça sem olhos
de todos os meus desejos.

E um odor de limão
preencheu o instante imenso,
como se o vento
estivesse a se converter em flor de seda.

(Federico García Lorca)