quarta-feira, 15 de julho de 2015

NOITE DE CHUVA - Florbela Espanca.




Chove na noite fria da ilha da magia. Oiço, dentro de mim, uma voz, quente e delicada, velha conhecida, amiga minha e das palavras:


NOITE DE CHUVA

Chuva... Que gotas grossas!... Vem ouvir:
Uma... duas... mais outra que desceu...
É Viviana, é Melusina a rir,
São rosas brancas dum rosal do céu...


Os lilases deixaram-se dormir...
Nem um frémito... a terra emudeceu...
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma... duas... mais outra que desceu...

Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito...

Ah, deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim... o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!

Florbela Espanca, em ''Reliquiae'', 1934

sábado, 11 de julho de 2015

O DESEJADO

Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!


Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia Nova.

Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!

(Fernando Pessoa em ''Mensagem'')



segunda-feira, 6 de julho de 2015

e na brancura seca desta rua
desta névoa sufocante que sou eu
respirar


respirar


respirar


respir...ar


ar
que me falta
ar que não sou

domingo, 5 de julho de 2015

Mundo Azul




há em meus olhos tristes
uma chama azul
lâmpada
gás
éter
algo, algo
um sentimento, um jeito, um gesto
que diz que não sou deste mundo

em meus olhos tristes jaz o meu segredo
o caminho de um planeta luminoso e feliz perdido por mim e por meus olhos
numa via distante do Universo

sou um exilado, um rebelado

mas ainda oiço os cantos dos meus irmãos
seres dourados, brancos como a neve, mantos azuis, as orelhas pontudas,
as mãos delicadas e as vozes mais doces e mais belas que já ouvi

um dia voltarei para lá, para a minha Ítaca
o meu Mundo Azul perdido
e ainda não esquecido

a Terra amada de hoje, bela e menos azul,  tem me dado as justas asas
que antes tanto reneguei

há em meus olhos
uma chama azul
apontando para o Sul
revelando a minha sede de transformação
o Amor finalmente começa penetrar minh'alma desterrada

voltarei para casa, há quem lá espere por mim,
uma pequena família amada

o meu peito então nesse dia
 irá refletir
o Sol, o meu Sol, aquele Sol
estrela Suprema Azul, delicada Sirius
de quem tanto sinto falta, de sua luz
que preenche a vida dos angélicos homens do Sul

voltarei, feliz, irmãos
finalmente transmutado
depois de tanto ser proscrito, voltarei
a aura azul-lilás,  nobre, bondoso e luminoso espírito