sábado, 1 de dezembro de 2018

Vejo as paisagens sonhadas... (Bernardo Soares)


Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço. Se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa.

De alguém alguém disse que para ele as figuras dos sonhos tinham o mesmo relevo e recorte que as figuras da vida. Para mim, embora compreendesse que se me aplicasse frase semelhante, não a aceitaria. As figuras dos sonhos não são para mim iguais às da vida. São paralelas. Cada vida — a dos sonhos e a do mundo — tem uma realidade igual e própria, mas diferente. Como as coisas próximas e as coisas remotas. As figuras dos sonhos estão mais próximas de mim, mas (…)


Excerto do ''Livro do Desassossego'', de Bernardo Soares.

terça-feira, 9 de outubro de 2018

Morte do leiteiro - Carlos Drummond de Andrade


Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Carlos Drummond de Andrade



quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O Álvaro gosta muito (poema de Cesariny)


Há poucos dias descobri um poema do Mário Cesariny que me encantou e surpreendeu. Trata-se de uma leitura homoerótica e, de algum modo, paródica da relação dos heterônimos de Fernando Pessoa, escritor que exerceu grande influencia sobre os versos de Cesariny. Divido, portanto, o texto com vocês:

O ÁLVARO GOSTA MUITO

O Álvaro gosta muito de levar no cu
O Alberto nem por isso
O Ricardo dá-lhe mais para ir
O Fernando emociona-se e não consegue acabar.

O Campos
Em podendo fazia-o mais de uma vez por dia
Ficavam-lhe os olhos brancos
E não falava, mordia. O Alberto
É mais por causa da fotografia
Das árvores altas nos montes perto
Quando passam rapazes
O que nem sempre sucedia.

O Fernando o seu maior desejo desde adulto
(Mas já na tenra idade lhe provia)
Era ver os hètèros a foder uns com os outros
Pela seguinte ordem e teoria:
O Ricardo no chão, debaixo de todos (era molengão
Em não se tratando de anacreônticas) introduzia-
-Se no Alberto até à base
E com algum incómodo o Alberto erguia
Nos pulsos a ordem da kabalia
Tentando passá-la ao Álvaro
Que enroscado no Search mordia mordia
E a mais não dava atenção.
O Search tentava
Apanhar o membro do Bernardo
Que crescia sem parança direcção espaço
E era o que mais avultava na dança
Das pernas do maço de heteronomia
A que aliás o Search era um pouco emprestado
Como de ajuda externa (de janela ao lado)
Àquela endemonia
Hoje em dia moderna e caso arrumado.

Formado o quadrado
Era quando o Aleyster Crowley aparecia.
«Iô Pan! Iô Pã!», dizia,
E era felatio para todos
e pão de ló molhado em malvasia.


***

Este poema foi retirado do site https://www.escritas.org, mas recomendamos o livro Poesia, da editora Assírio Alvim, publicado em 2017, em Portugal.

domingo, 22 de julho de 2018

É você que tem
Os olhos tão gigantes
E a boca tão gostosa

...



en la noche
estrellada
el alacrón
indicaba
el camiño torto
de la estrella roja
qué ilumina
mi corazón perpetuo







en la noche
oscura
de muchas palabras
y pocas caras
nada tiene más sentido
que una estrella

que cae

sábado, 21 de julho de 2018

no meu coração tu passeias
corres na areia
mergulhas e te banhas
andorinha
por causa de ti
em mim não há inverno
só verão
e dias assim
tão azuis.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Cielo vivo (Federico Garcia Lorca)

Yo no podré quejarme
si no encontré lo que buscaba.
Cerca de las piedras sin jugo y los insectos vacíos
no veré el duelo del sol con las criaturas en carne viva.

Pero me iré al primer paisaje
de choques, líquidos y rumores.
que trasmina a niño recién nacido
y donde toda superficie es evitada,
para entender que lo que busco tendrá su blanco de alegría
cuando yo vuele mezclado con el amor y las arenas.

Allí no llega la escarcha de los ojos apagados
ni el mugido del árbol asesinado por la oruga.
Allí todas las formas guardan entrelazadas
una sola expresión frenética de avance.

No puedes avanzar por los enjambres de corolas
porque el aire disuelve tus dientes de azúcar,
ni puedes acariciar la fugaz hoja del helecho
sin sentir el asombro definitivo del marfil.

Allí bajo las raíces y en la médula del aire,
se comprende la verdad de las cosas equivocadas.
El nadador de níquel que acecha la onda más fina
y el rebaño de vacas nocturnas con rojas patitas de mujer.

Yo no podré quejarme
si no encontré lo que buscaba;
pero me iré al primer paisaje de humedades y latidos
para entender que lo que busco tendrá su blanco de alegría
cuando yo vuele mezclado con el amor y las arenas.

Vuelo fresco de siempre sobre lechos vacíos,
sobre grupos de brisas y barcos encallados.
Tropiezo vacilante por la dura eternidad fija
y amor al fin sin alba. Amor. ¡Amor visible!


Poema extraído do livro Poeta en Nueva York.
medusas
brilhantes
gigantes
do pacífico
a brilhar no mais profundo azul
estrelas distantes
fluídicas
pelágicas
da galáxia oceânica
anãs marrons, vermelhas, amarelas, gigantes azuis
movem-se, caem
flutuam à superfície
à borda do seu universo
e morrem
secam
desaparecem
mas não sem antes queimar a mão de algum miúdo

medusas
brilhantes
água viva
e água morta
são como nós
seus corpos desaparecem
como se nunca tivessem existido.



domingo, 28 de janeiro de 2018

pobre Orpheu
da antiguidade
perdido em sua soledade
abandonado
do amor amargurado
na Trácia pela fúria assassinado

para cada lado um membro
só a cabeça com a cabeleira extensa intacta
seu rosto triste e humano
a escapar das mãos das feras

a correr pelo rio abaixo
do tempo, das eras

reencarnado, ressuscitado, relembrado
sempre que a brisa é fria
e há espaço n'algum ser
para poesia

no oceano da vida
ser orpheu é cantar
ainda que haja sangue

hastear a bandeira da doçura
da esperança
quando só restar a loucura
e à porta dos infernos
falar de amor, de perdão e de ternura

orpheu sacrificado
Cristo também foi
na cruz que matou seu corpo,  não seu sonho.

para ti, pequeno,

meus versos
meus olhos
meu corpo
minha vontade
o sonho de amplidão
coração
vastidão do (a)mar.