sexta-feira, 30 de outubro de 2015

DEUS

procuro, nesta noite incauta, eu procuro,
a busca talvez mais óbvia,
mas também mais difícil, demoradamente compreendida pelos espíritos,
procuro por Deus nesta noite,
sim, Deus, a face-luz do Universo, da Vida,
o começo, o meio, a eternidade,
a paz, 
a felicidade,
procuro por ele, por Deus, 
que pode, o único que pode, 
me dar paz, pôr fim aos fantasmas todos que ainda teço,
mas é uma busca difícil, como disse, 
somos nós quem temos de caminhar até ele,
que não é um homem, que não é uma mulher,
que é algo para-além da nossa compreensão atual,
ele, o Amor-puro, a Verdade, a Justiça,
o Todo, a Mãe, o Pai,  a causa de todas as coisas,
 aquele que nos criou com todo o seu amor
e que de nós espera o mesmo,
espera que, aos poucos,
aprendamos a ser também amor,
a dar amor, a ensinar amor,
a viver, pensar, sentir
amor,
a pulsar amor,
a distribuir, a mostrar, a orientar os outros a chegarem lá,
no amor universal,
na liberdade verdadeira e na felicidade plena,

sim,
amar, amar, amar,
dividir o pão,
demolir o orgulho, rasgar as vaidades vis,
matar de todo o egoísmo,
perdoar,
mágoas cindir,
amar, ser leve, manso,
aprender a dar a outra face,
e dedicar ao outro o amor que dedicamos a nós próprios,
abandonar, por fim, o pobre e tolo Narciso
e ser grande, belo e humilde como o Cristo. 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

18/10/2015

o que trazem os dias nublados

além desta calma
utópica
plena mansidão
que olha o dia complacentemente
como se fosse o último?


o que trazem os dias nublados
além desta santa
saudade
imaculada e profana
do teu corpo de outrora?

o que trazem os dias nublados
além desta desnuda
vontade
dama sem piedade
de pura introspecção?

o que trazem os dias que se vestem de cinza,
então?

adiantará eu me vestir de vermelho
numa última desesperada tentativa
de dizer que ainda há vida
e paixão, sim, paixão e viço
no meu ser tão sem razão?

adiantará dizer assim
que ainda há lucidez
nos meus passos de lentidão
em direção a janela,
donde olho a avenida e não vejo ninguém,
não há ninguém, não vem ninguém,
tudo é silêncio, libido e pardacento,
devassidão,
um palavrão, um olhar de desdém.

27/09/2015

e vou caminhando triste
pulando as poças d'água
em vão
as minhas botas já estão molhadas


e vou pensando na vida
vendo na água o meu rosto, o teu rosto
aquele dia em que atravessei alegre a ponte de Santa Clara pra te encontrar
aquele abraço que não foi suficiente pra me despedir

e vais passando então diante de mim
fugidio
como uma ave branca
fantasma
pulando as poças, perdendo-te na névoa
rindo diabolicamente
ganhando voo
olhando o Iphone sem dar por mim

e vou segurando o guarda-chuva
sem força e sem vontade
completamente encharcado
compondo versos na mente
fingindo que a dor não existe
que não há saudade e que faz sol
não, não está chovendo
eu não estou chorando
e tu nunca cruzaste a avenida para me beijar

terça-feira, 13 de outubro de 2015

CAFÉ AROMA (ou uma pequena viagem qualquer, essas de fim de dia)

sento no Café Aroma, que não tem nada de especial, é só mais um café
desses tantos que há pelo centro de Floripa

talvez eu esteja sendo injusto, há, sim, algo de especial no Café Aroma,
um ''não sei quê'' de nostalgia, que me provoca uma saudade, uma melancolia,
lembro das então pastelarias
da baixa de Coimbra

sento-me perto da porta,
que é pra ver quem passa na velha e antiquada João Pinto,
rua a pintar todos dias um outro tempo, uma Floripa cada vez mais distante,
perdida e esquecida

pergunto se tem pastel de natas e o garçom olha-me como se tivesse feito
uma pergunta n'outra língua,
explico que pastel de natas é o mesmo que pastel de belém,
ele sorri mais contente, mas fecha a cara e diz,
Não, senhor, às vezes temos, mas hoje não,
Certo, dá-me, então, um pedaço daquela torta de limão
e uma média com leite, se faz favor

é estranho,
estranho ser estrangeiro na própria terra,
ser estrangeiro no meu país,
desde que voltei da minha viagem não fui capaz de me reencontrar,
e levo, todos os dias, na alma esse modo melancólico propriamente luso de ser,
olhar a vida, tomar café, ler o jornal e abrir os livros

o tempo, este aqui da João Pinto,
das ruas da parte velha da cidade, esta que ainda guarda
o ar, o aroma, de um passado que tem
cada vez mais a aparência dum fantasma,
é outro, outro tempo,
as pessoas caminham menos apressadas e não andam segurando smartphones,
talvez nem sintam azias, pós-modernas azias

gosto particularmente dos sebos, de entrar nesses lugares poeirentos,
cheios de livros velhos e revistas inúteis, e reparar na cara de quem ali
passeia, cruza os corredores a pensar na vida, nas angústias de cada dia,
a procurar pequenos gozos, singelas doses para a alma de ambrosia

o café já está frio, bebo-o mesmo assim,
afinal dizem que estamos em crise, é preciso economizar até mesmo nos cafezinhos,
sobre a mesa está o meu livro do Garrett, aquele das Viagens,
Viagens na minha terra

o garçom não conhece Garrett, repara no meu livro curioso, mas com olhar decepcionado,
de certo esperava que eu estivesse a ler outra coisa,
reparo no modo como ele se escora no balcão, o tédio que tem no olhar,
as coxas grossas e os pêlos no peito que aparecem por conta da camisa de gola cavada,
eu te levaria para casa, petit garçon,
namoraríamos durante dois anos e viria te esperar todas as tardes, sentaria sorridente,
tu farias gracinhas e eu ficaria reparando no modo como rebolas e te insinuas
para mim

suspiro fundo, percebo que o tempo está a se fechar,
Vem chuva aí, diz um senhor que está sentado do lado de fora,
mais para si que para qualquer outro,
somos todos assim, uns solitários, vivemos constantes monólogos

um casal entra no café de mãos dadas, sorriem
como se o amor não acabasse e eles para sempre fossem se amar,
doce ingenuidade, bastará que numa noite de verão, ela cansada,
ele, cheio de libido e de machismo, se enfeze com um não,
Não, não vamos transar hoje, querido, tenho dor de cabeça,
e pronto, terá sido em vão os juramentos feitos ao padre e ao escrivão

tudo se finda,
aceitemos, os corpos apodrecem, as revoluções tornam-se autoritarismos,
o amor vai ficando pra depois,
as viagens, como todas, terminam,
como esta pequena e despretensiosa viagem
que fiz, sentado nesta mesa de café, num dia qualquer,
lembrando, pensando, querendo escrever esses versos
que só serão escritos horas depois, na minha casa,
e já não serão os versos certos, os que pensei,
serão outra coisa, outra viagem,

aqui o mar, mental, acaba e a terra, que é corpo, fica.

(C. Berndt - 13.10.2015)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

IV

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Quere ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?


(Cecília Meireles em ''Cânticos'')