sexta-feira, 31 de março de 2017

31/03/2017

Da minha janela eu vejo o céu
azul
azul placentário
azul celestial, de certo o mesmo céu abençoado
e terrível dos desertos em que se perdem e se encontram
os peregrinos, azul de liberdade e perdição
então

azul, azul distante
que me leva para fora e dentro de mim
quando eu só queria casca de árvore
gosto de maçã
beijo bom demorado
os teus olhos amendoados
sem ventos
só a leve brisa da tarde
a balançar em calmaria
uma cortina, uma manhã,
uma descomplicada fantasia.

30/03/2017.

o calor do vinho
faz dois homens terem vontade de desabotoar a camisa
e abrir a janela
e olhar o mar
as estrelas brilhantes que não existem
e ainda brilham
mãos que se apertam
e olhos que se despem
em ternura e silêncio
mesmo ainda os que não se conhecem
são cometas quentes e ferventes
a entrar na órbita morna
da Terra
levantam de ar correntes salinas
que desvelam suspiros de ontem
fortes e contentes.

C. Berndt


domingo, 19 de março de 2017

pudera
sermos tão livres como nos sonhamos
o mundo quiça fosse menos duro aos nossos olhos
infantis e limitados

mas não haveria justiça
o mal sobrepor-se-ia ao bem
o egoísmo engoliria o amor, fonte da vida,
energia criadora, balança e face de Deus

a vida que te parece hoje injusta é
antes
fruto doutras eras, doutros passeios que fizeste
anteriormente na matéria

semeia luz, planta caridade
e acharás o caminho do Oceano
onde viverás tua eternidade

mira com Amor então o Sol
e divide-o com teus irmãos
liberta-te das sombras
segue o curso do rio
esquecendo as margens das candeias confusas
e efêmeras.

C. Berndt
19/02/2017

sábado, 18 de fevereiro de 2017

ao fim e ao cabo,
noites que pareciam ter passado
retornam,
com seu mel e todo seu fel


Saturno brilha no céu a me dizer
que o tempo é irrecuperável

não há nada para se buscar no passado
e o futuro, escuso e distante,
é sufocado por um presente quieto
e cheio de chá camomila

quando eu queria dançar sem medo
sob a chuva
ou me queimar no sol
só pra sentir o alívio de um banho frio.

C. Berndt
18/02/2017

domingo, 29 de janeiro de 2017

FIM.

foi na última estação que eu escrevi um poema
meu último poema
era frio e eu pensava em ti
nem o vinho desviava meu pensamento maldito de ti
e tu cantarolavas fados e brincavas com teu zippo
entre os dedos
o meu amor e a tua soberba de ariano
mas já fazia tanto tempo
e eu estava na minha ilha e tu eras uma lembrança
abutre à espera do meu cadáver
o meu coração, como o do pobre menino Luís XVII de França,
naquela época,
em plena revolução e tristeza, se arrancado de mim,
talvez resistisse também petrificado
ou imerso num recipiente de álcool e palavras
mas hoje é verão
chove, mas é verão
e meu coração
está livre e leve
andorinha feliz sobre o céu de Garopaba
água limpa que corre do morro e beija o mar
a boca de um jovem pescador
filho do litoral, mãos de rede
a limpar-me dos olhos o sal
a dor
é verão, é verão
e eu não te espero mais, D. Sebastião,
morreste no areal
e eu sorrio e dumo sem pesadelos e saudades
sou porto, praia e silêncio,
essas palavras representam o fim
o meu corpo não é mais uma nau.

C. Berndt
29/01/2017.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

procura

a procurar
a procurar
tenho estado assim, a procurar
não sei o que
quem
qual tempo
exato
nem mesmo sei quando foi que se partiu
quando foi que me perdi na floresta do sonho
a procurar uma brisa que senti
a cor duma camiseta
de um cachecol
o cheiro do pescoço de um homem
a procurar o indizível
o longínquo
o fácil
aquilo que dói menos
e às vezes é difícil dizer
difícil dizer tudo que aperta
difícil subir a rua e ter coragem pra virar à direita
quando o corpo acostumado quer ir à esquerda
a procurar, sabe, um rosto
talvez
não, não
é preciso que se diga o que se procura
mesmo
mas se não se sabe
ao menos que se procure o que pode ser achado
não aquilo que foi para o fundo do mar
que foi para Boston
para Cingapura
ou o raio que o parta
a procurar por um sonho
por um minuto verdadeiro de silêncio
a procurar uma paz gigante
que me cubra de flores
margaridas
numa tarde verde de julho
em que voem palavras de respiração
desprendidas
cheias de sons leves
brilhantes
como o rosto jovem da minha irmã cheio de sonhos
é bom ver que a juventude tem asas pra voar
ainda
nestes tempos tão
tão não sei quê
e tudo se perde então
nas vagas
na noite
na solidão
e na esperança
que sempre, sempre renasce
afinal, a vida só é a vida porque não tem fim
deste ou do outro lado
então
a procurar o amor, sim,
a sede que todos temos
o amor verdadeiro que nos há de libertar
deste mar
de loucura
de lonjura
de dor

amor,
procura.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Desertos

Infinitas vezes a Terra girou em torno de si.
Infinitas vezes vieram as estações e se foram.
Infinitas vezes passaram-se os dias, os meses e os anos.
Sim, já lá se vai algum tempo.


E depois de tanto andar,
de me iludir e por vários corpos passear,
dou-me conta de que, ao fim e ao cabo,
regresso sempre ao mesmo lugar,
dou voltas e voltas e tudo o que encontro
é este 'inferno de amar'.

Estou em meio ao mar,
numa noite sem estrelas,
completamente só, dentro de um barco vazio
a balançar.
No corpo frio do oceano, refletido e estampado,
como uma maldição, enxergo o teu rosto,
pálido e terrivelmente belo.

Então esfrego os olhos
e a verdade surge como a luz de todos os dias:
permaneço no deserto para o qual me trouxeste
e de onde nunca, nunca mais saí.
Tudo o que tenho vivido são miragens.
Aqui, só há ilusão.

Sob este areal, jaz sepultado o meu coração.
Alcácer-Quibir nunca terminará.
Eu sou Dom Sebastião.

**

sábado, 16 de julho de 2016

ALCÁCER-QUIBIR

Quando penso que então
Chegou o tão prolongado fim
Da batalha do meu coração,
Eis que o areal surge de novo, engole-me,
Sinto as flechas em meu dorso, dor profunda e escuridão.


E não há ninguém que possa dizer
Que está morto D. Sebastião.
A dor de vê-lo partir se repete, a mesma mágoa,
O mesmo gosto na boca, o grito duma nação
Cujo pranto está fadado a se estender.

Mas é diante da morte
Que a verdade se revela,
Aquele que morre e este que espera
São senão a mesma pessoa,
Sou eu o Encoberto, rei sem cama, vela de má sorte.

C. Berndt

12/07/2016

terça-feira, 31 de maio de 2016

NOITE SILENCIOSA

é a noite mais silenciosa que vi

passa por entre as folhas das árvores a névoa úmida e branca
das madrugadas


silencioso
lábios entreabertos
olhos marejados a fitar o Longe
o quão longe no passado eu ainda posso ir?
o quão posso viver eu ainda desse passado,
amargo e doce, como o melhor e o pior dos amores?

o vento segue rumo ao mar
a levar as nuvens e os meus suspiros
poderá ele te falar de novo da minha dor
e da minha insana saudade?

ainda é
teu rosto
pálido e belo como a mais terrível manhã de inverno
que reconheço no céu, nas nuvens, no horizonte

''tu não te cansas de esperar, Penélope?'' - diz-me
a hostil voz da consciência

e eu a ela respondo, tímido
e envergonhado:
esperar já não espero,
mas é à mortalha,
é à mortalha de palavras a quem permaneço fiel,
o que seria de mim, alma lusa,
sem o meu triste fado?


31/05/2016

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Há dias em que a carne endurece,
Entorpece, em que as palavras,
Tantas vezes pétalas, tornam-se pedras.

Então sou mármore, semblante triste esculpido,
Estátua de Michelangelo, olhos de Antígona,
O rosto de Atena esquecido
A mirar o Longínquo, uma ave noturna
Que voa para o meu Olimpo perdido.