sábado, 18 de outubro de 2014

MEDO

é da noite que mais tenho medo

os fantasmas os rostos
o passado inteiro com seus dentes caninos mais afiados
o balançar sombrio e repentino da cortina escura, cheia de poeira
as frestas na janela
a coruja poisada no garapuvu piando como se sentisse dor,
a minha dor

tudo isso, sabe,
é que me mete medo

me dá uma vontade doida e infantil
de meter a cabeça de baixo do travesseiro
e chamar pela minha mãe,
que a essa hora já dorme o seu sono tranquilo de mãe

é um medo de olhar sem medo
encarar frio e corajosamente
o que em mim ainda pia, lateja, goteja mágoa,
traz saudade ou ódio,
ou às vezes simples ânsia,
não me pergunte de quê, é uma ânsia ânsia,
indescritível ânsia
que a mim faz todo sentido

veja bem, nem sei bem
do que é que tenho medo
mas conheço bem o que amo
e o que abomino,
conheço bem a cara que pintei
para mostrar e sonhar as coisas belas
e esquecer e denunciar as terríveis

mas pronto,
tenho medo é de não ser livre,
eu acho,
mas quem é livre mesmo, afinal?

a coruja parda é mais livre do que eu, certamente!
quais dores dormem em seu peito sensível coberto de penas?

dona coruja dos olhos de lua,
estou cheio de pena,
de medo
e de algum amor para dar também,

amor para dar, entrega garantida,
ao homem que passar e me encantar
com suas nádegas gestos humildade

não tens pena de mim, das minhas dores,
deste homem que me amará e um dia
me dirá adeus?

ou serei eu, de novo, que me irei embora?

é da noite,
de todas essas sombras confusas e dissimuladas,
desses pios, dessas palavras que não valem nada,
dessa vontade de traduzir desejo sexo amor saudade dor e tudo
com alguns versos,
que mais tenho medo!

tenho medo de mim
do que em mim vive
do que sobrevive aos ácidos  dos dias
do que morde encanta liberta
e assusta

sobretudo quando termino de escrever um poema destes,
puro nonsense cheio de sentido!

tenho medo medo

é de mim, dona coruja dos olhos inocentes,
que mais tenho medo!


sábado, 11 de outubro de 2014

fim de tarde,

o sol como um menino tímido
de cabelo amarelo
escondido atrás do Cambirela,


rua escura e vazia,
lajotas tortas,
caminho feito de pedras e de um perpétuo ontem,

uma garça que voa pr'a não sei onde,
as suas penas brancas
foram a única bandeira de paz
que vi neste dia
de pouco sorriso.

domingo, 21 de setembro de 2014

IMPRESSÕES I

Estou na biblioteca. Noto que as pessoas entram no recinto e dirigem-se quase todas a um canto, onde estão umas máquinas pretas, leitoras de códigos de barras, computadores modernos, semi-inteligentes, máquinas – chamemo-las assim, apenas de  máquinas. Nestas engenhocas, isto é, nestas máquinas, os estudantes inserem a sua password, a sua senha e podem, prontamente, tanto devolver quanto requisitar livros. Eu, no entanto, faço parte da meia dúzia de etês que insiste no passado,  no velho hábito de ir à mesa onde estão umas senhorinhas de mãos ágeis e sorriso frouxo, prontas para receber as devoluções e realizar novos empréstimos. Há quem diga que não há nenhuma diferença entre o trabalho das máquinas e o trabalho realizado pelas  senhorinhas da biblioteca. Contudo, eu prefiro, sim, o contato humano, os olhos vivos, as palavras de educação, ainda que ditas por mero costume, o ''bom dia'' que as máquinas nunca me darão. 

Tempestuo.

nuvens brancas
largas e fortes,
extensa cordilheira de montanhas
suspensa no céu,
lembram-me o teu corpo
e eu não sei dizer porque,

o teu branco corpo,
delicado,
pequeno
e tantas vezes fugidio,
que tanto amei beijei penetrei,

que hoje
me é tão distante,
mais do que essa montanha de nuvens
vulcão adormecido de água em vapor
que logo descerá à terra,
talvez na forma de uma tempestade,
talvez como uma mansa e dolorida garoa de primavera,

a minha cabeça se enche de nuvens
e os meus olhos de água do mar,
tempestuo sozinho,
vou pr'a casa,
as lembranças se misturam, são espuma
ou qualquer coisa informe, escapam

o teu corpo,
o teu rosto,
o meu amor,
tudo isto está no céu, naquela montanha gigante
de nuvens de algodão doce
que talvez se torne
água do Atlântico
e vá te visitar
num dia em que estiveres sozinho
a ver o sol se pôr na Figueira da Foz,

vou pr'a casa,
tempestuo,
queria ser nuvem,
asa,
ar, vento,
Deus,
teu.



(C. Berndt)

Justo a mim coube ser eu.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

AMAR (Carlos Drummond de Andrade)




Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o amar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

(Carlos Drummond de Andrade)



Dead Combo - Esse Olhar Que Era Só Teu

Linda melodia, que me fez repetir e relembrar, com outro tom, aqueles versos tão lusitanos: ''Ó mar salgado....''


quinta-feira, 24 de julho de 2014

teu rosto sombrio
me assombra

ainda

e essas sombras todas
que o vento sul
traz de tão longe

silvos nuvens desfeitas
dedos frios de ar
brotados de calotas da remota Antártida

entram-me pela blusa
tocam sem cuidado
o meu corpo breve
e a minha delicadeza exposta

roda dos ventos
de braços abertos,
os mamilos arrepiados,
onde se partem direções
leste oste sul

e norte, para onde tu sempre voltas
os teus olhos,
solidão!


( C. Berndt) 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Épigraphe pour un livre condamné

Lecteur paisible et bucolique,
Sobre et naïf homme de bien,
Jette ce livre saturnien,
Orgiaque et mélancolique.

Si tu n'as fait ta rhétorique
Chez Satan, le rusé doyen,
Jette ! tu n'y comprendrais rien,
Ou tu me croirais hystérique.

Mais si, sans se laisser charmer,
Ton oeil sait plonger dans les gouffres,
Lis-moi, pour apprendre à m'aimer ;

Ame curieuse qui souffres
Et vas cherchant ton paradis,
Plains-moi !... sinon, je te maudis !

***

Charles Baudelaire 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

EM TODAS AS RUAS TE ENCONTRO

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(Mário Cesariny, em "Pena Capital")