Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais. Se me debruço sobre os meus sonhos é sobre qualquer coisa que me debruço. Se vejo a vida passar, sonho qualquer coisa.
De alguém alguém disse que para ele as figuras dos sonhos tinham o mesmo relevo e recorte que as figuras da vida. Para mim, embora compreendesse que se me aplicasse frase semelhante, não a aceitaria. As figuras dos sonhos não são para mim iguais às da vida. São paralelas. Cada vida — a dos sonhos e a do mundo — tem uma realidade igual e própria, mas diferente. Como as coisas próximas e as coisas remotas. As figuras dos sonhos estão mais próximas de mim, mas (…)
Excerto do ''Livro do Desassossego'', de Bernardo Soares.
Agora,
São as Fúrias
Que me dilaceram.
O que de ti me deram
Os deuses infernais,
Não era teu.
Sombra dum sonho que já não vivias,
Em vez de iluminar, enegrecias
O caminho de Orfeu.
E fitei-te nos olhos, luzes mortas.
Caronte abrira as portas
Da minha perdição.
Todos os condenados,
Libertados
No momento supremo do meu canto,
Regressavam ao pranto
Da condenação.
E eu próprio ia arrastar
A minha pedra de desassossego.
Eu próprio ia ter sede
E fome, eternamente.
Eu próprio recebia,
No espírito e na carne,
O beijo enraivecido
Das Iras,
Que não perdoam a nenhum mortal
As divinas mentiras
Que o amor desmascara, por seu mal.
E tomando as flores de sua lapela, ele as pôs na minha apenas com uma das mãos, ao mesmo tempo em que passava seu braço esquerdo em torno da minha cintura e me apertava com com força, pressionando-me contra seu corpo inteiro por alguns segundos. Esse curto intervalo pareceu-me uma eternidade.
Pude sentir seu hálito quente e ofegante sobre meus lábios. Embaixo, nossos joelhos se tocaram, e senti algo duro comprimir-se e movimentar-se de encontro às minhas coxas.
Minha emoção naquele momento era tal que mal podia ficar de pé; por um momento pensei que ele fosse beijar-me — mais do que isso, os pêlos crespos do seu bigode roçavam ligeiramente os meus lábios, produzindo a mais deliciosa das sensações. Porém, ele apenas olhou no fundo dos meus olhos com um fascínio demoníaco.
Senti o fogo do seu olhar mergulhar profundamente no meu peito, e muito mais abaixo. Meu sangue começou a ferver e borbulhar como um fluido em ebulição, e senti meu... (o que os italianos chamam de “passarinho”, e representavam como um querubim alado) lutar contra a sua prisão, erguer sua cabeça, abrir seus minúsculos lábios e novamente expelir uma ou duas gotas daquele fluido viscoso gerador da vida.
Mas aquelas poucas lágrimas — longe de serem um bálsamo atenuante — pareciam gotas de um líquido cáustico, queimando-me e produzindo uma forte e insuportável irritação.
Eu me sentia torturado. Minha mente era um inferno. Meu corpo estava em chamas.
Bem nesse momento ele soltou seu braço de minha cintura, e este caiu inerte com seu próprio peso, como o de um homem adormecido.
— Você acha que sou louco? — disse ele. Depois, sem esperar uma resposta: — Mas quem é são e quem é louco? Quem é virtuoso e quem é pervertido neste nosso mundo? Você sabe? Eu não.
A lembrança de meu pai me veio à mente e perguntei a mim mesmo, trêmulo, se meu senso também estaria me deixando.
Houve uma pausa. Nenhum de nós falou por algum tempo. Ele havia entrelaçado seus dedos com os meus, e caminhamos por alguns momentos em silêncio.
Todos os vasos sanguíneos do meu membro ainda estavam fortemente distendidos e seus nervos rígidos, os dutos espermáticos cheios a ponto de transbordar; portanto, com a ereção persistindo, senti uma dor surda se espalhar pelos órgãos reprodutores e suas proximidades, ao mesmo tempo em que o resto do meu corpo encontrava-se num estado de prostração, e ainda assim — apesar da dor e do langor —, era um sentimento muito prazeroso caminhar calmamente com nossas mãos entrelaçadas, sua cabeça quase pousada no meu ombro.
— Quando foi que você sentiu pela primeira vez os meus olhos nos seus? — ele me perguntou, num tom baixo, depois de algum tempo.
— Quando você subiu ao palco pela primeira vez.
— Exatamente; então nossos olhares se encontraram, e depois estabeleceu-se uma corrente entre nós, como uma faísca elétrica percorrendo um fio condutor, não foi?
— Sim, uma corrente ininterrupta.
— Mas você realmente me sentiu antes que eu me retirasse, não é verdade?
Como única resposta, pressionei seus dedos com força.
(...)
A carne, o sangue, o cérebro, e aquela indefinível parte mais sutil dos nossos seres pareceram fundir-se num inefável abraço.
Um beijo é algo mais do que o primeiro contato sensual entre dois corpos; é a emanação de duas almas enamoradas.
Mas um beijo criminoso, ao qual se resiste e combate durante muito tempo, e é por esse motivo há muito há muito ansiado, está além disso; é tão luxuriante quanto o fruto proibido; é uma brasa incandescente sobre os lábios; uma marca a ferro quente que queima a fundo, e transforma o sangue em chumbo derretido ou mercúrio escaldante.
O beijo de Teleny era realmente galvânico, pois eu podia sentir seu sabor até em meu palato. Era necessário um juramento, quando já havíamos nos dado tal beijo? Um juramento é uma promessa de boca para fora, que com frequência pode ser, e é, esquecida. Um beijo como aquele acompanha-nos até a sepultura.
Enquanto nossos lábios estavam unidos, sua mão lentamente, imperceptivelmente, desabotoou minhas calças, e sorrateiramente deslizou para dentro da abertura, pondo cada obstáculo em seu caminho instintivamente de lado até tomar posse do meu falo duro, teso e dolorido, que ardia como o carvão em combustão.
(...)
WILDE, O. Teleny, ou o reverso da medalha. São Paulo: Hedra, 2008. *
* Este livro foi publicado anonimamente em 1893, na Inglaterra, e hoje se sabe que se trata de um esforço conjunto de amigos de Oscar Wilde. O autor de ''O Retrato de Dorian Gray'' teria, na verdade, sugerido alguns episódios e dado a forma final ao texto.
Deu-me Deus o Seu Gládio, porque eu faça A Sua santa guerra. Sagrou-me Seu em génio e em desgraça As horas em que um frio vento passa Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou‑me A fronte com o olhar: E esta febre de Além, que me consome, E este querer-justiça são Seu Nome Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do Gládio erguido dá Em minha face calma. Cheio de Deus, não temo o que virá, Pois, venha o que vier, nunca será Maior do que a minha Alma!
Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984. - 35.
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!
Estou na biblioteca. Noto que as pessoas entram no recinto e dirigem-se quase todas a um canto, onde estão umas máquinas pretas, leitoras de códigos de barras, computadores modernos, semi-inteligentes, máquinas – chamemo-las assim, apenas de máquinas. Nestas engenhocas, isto é, nestas máquinas, os estudantes inserem a sua password,a sua senha e podem, prontamente, tanto devolver quanto requisitar livros. Eu, no entanto, faço parte da meia dúzia de etês que insiste no passado, no velho hábito de ir à mesa onde estão umas senhorinhas de mãos ágeis e sorriso frouxo, prontas para receber as devoluções e realizar novos empréstimos. Há quem diga que não há nenhuma diferença entre o trabalho das máquinas e o trabalho realizado pelas senhorinhas da biblioteca. Contudo, eu prefiro, sim, o contato humano, os olhos vivos, as palavras de educação, ainda que ditas por mero costume, o ''bom dia'' que as máquinas nunca me darão.
Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão rodar também, e amar? amar o que o amar traz à praia, o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto, o que é entrega ou adoração expectante, e amar o inóspito, o áspero, um vaso sem flor, um chão de ferro, e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta, distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, doação ilimitada a uma completa ingratidão, e na concha vazia do amor a procura medrosa, paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Hoje estou triste como um barco negro ao sol.
Minha alegria foi-se embora com as malas.
Meu coração anda por casa do silêncios
Abrindo as portas e espreitando para os quartos.
E tudo isto, que não tem nenhum sentido,
É o sentindo essencial da minha vida…
Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto…
Sim o resto parece-se apenas com a vida.
Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.
Fumo, sonho, recostado na poltrona.
Dói-me viver como uma posição incomoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das cousas
Onde sofrer seja uma cousa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.
Abrigo no meu peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções trites, como as ruas estreitas quando chove.
Dai-me rosas e lírios,
Dai-me flores, muitas flores,
Quaisquer flores, logo que sejam muitas…
Não, nem sequer muitas flores, falai-me apenas
Em me dardes muitas flores.
Nem isso… Escutai-me apenas pacientemente quando vos peço
Que me deis flores…
Seja essas as flores que me deis…
Ah, a minha tristeza dos barcos que passam no rio
Sob o céu cheio de sol!
A minha agonia da realidade lúcida!
Desejo de chorar absolutamente como uma criança
Com a cabeça baixa encostada aos braços cruzados em cima da mesa,
E a vida sentida como uma brisa que me roçasse o pescoço,
Estando eu a chorar naquela posição.
O homem que apara o lápis à janela do escritório
Chama pela minha atenção com as mãos do seu gesto banal.
Haver lápis, e aparar Lápis, e gente que os apara à janela é tão estranho
É tão fantástico que estas cousas sejam reais!
Olho para ele até esquecer o sol e o céu.
E a realidade do mundo faz-me dores de cabeça.
A flor caída no chão.
A flor murcha(rosa branca amarelecendo)
Caída no chão…
Qual é o sentido da vida
(que sentido tem a vida?)
Esta luz, este FUEGO QUE DEVORA.
Este paisaje gris que me rodea.
Este dolor por una sola idea.
Esta angustia de cielo, mundo y hora.
Este llanto de SANGRE que decora
lira sin pulso ya, lúbrica tea.
Este peso del mar que me golpea.
Este ALACRÁN que por mi pecho mora.
Son guirnaldas de amor, cama de herido,
donde sin sueño, sueño tu presencia
entre las ruinas de mi PECHO hundido.
Y aunque busco la cumbre de prudencia
me da tu corazón valle tendido
con CICUTA y pasión de amarga ciencia.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Compartilho aqui este magnífico conto de João Silvério Trevisan, que é uma verdadeira pérola literária, provocando-nos com indagações a respeito da vida, do amor, dos mistérios e da morte... Logo abaixo, já que se trata de ''provocações'', podem encontrar a interpretação do mesmo conto feita por ninguém menos do que Antônio Abujamra.
DOIS CORPOS QUE CAEM:
Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
- Oi – disse o primeiro, no alvoroçado início da queda. – Eu me chamo João. E você?
- Antônio – gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só pra matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
- Estou me matando – respondeu João. – E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor – respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. – Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos…
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica
- gritou João num tom quase triunfante. – Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou Antônio – você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro. – Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância
da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom – respondeu Antônio – me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiados horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei – respondeu Antônio. – Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério! – protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe…
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim… – e João engasgou.
- Ora – revidou Antônio vivamente. – A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homems, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério – insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos. João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora – disse Antônio bem diante do rosto de João – falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luiz.
Númenna - Into the West - é um poema escrito por Tolkien numa das línguas que ele próprio inventou, o Quenya. Na mitologia de Tolkien, esta é uma língua falada pelos ''altos-elfos'', pertencentes às casas de Noldor e Vanyar, aqueles que alcançaram Valinor, uma espécie de ''paraíso'', um grande Vale localizado no extremo Oeste da Terra-Média, morada dos Valar, que são os deuses que construíram e edificaram o mundo. Maiores informações sobre isso podem ser encontradas no livro póstumo de Tolkien, ''O Silmarillion''. A partir do Quenya surgiram todas as outras línguas faladas por homens, hobbits, anões e outros seres que vivem na Terra-Média. Dessa forma, o Quenya pode ser comparado ao Latim Clássico, do qual derivaram as atuais línguas latinas faladas no Ocidente. Enfim, sou completamente apaixonado pela obra de Tolkien, a baixo têm o poema musicado e cantado em Quenya....
Gostaria apenas de compartilhar este texto com vocês que acompanham, carinhosamente e com alguma regularidade, as atualizações deste meu «cantinho de desabafo e poesia».
É um texto escrito pelo jornalista José Castello, publicado no Jornal ''O Globo'' em 18/08/2012 e e que está disponível no blog «Conteúdo Livre»
O texto se chama ''A criança perdida'' e trata-se de uma espécie de reflexão sobre o ato de escrever e sobre a figura do escritor. José Castello discute e questiona o modo como, na atualidade, a sociedade e as instituições ligadas à Literatura relacionam-se com a figura do escritor, faz isso através das ideias do escritor Bartolomeu Campos de Queirós.
Aqui têm alguns trechos que resumem, mais ou menos, algumas de suas ideias principais:
''Falecido em janeiro de 2012 aos 67 anos, o escritor Bartolomeu Campos de Queirós nunca se cansou de dizer, ao contrário, que os escritores não escrevem com o que sabem, mas com o que desconhecem. “Se a literatura é uma extensão do autor, a mim ela surge pela falta”, diz em um dos ensaios de “Sobre ler, escrever e outros diálogos” (editora Autêntica). “Meu desejo é talvez de contar para os mais jovens aquilo que gostaria que fosse narrado a mim”.
“Só me interesso pelo que me falta”, insistia em dizer, e com isso explicava um pouco como os escritores suportam tantos anos de solidão antes de chegarem a um livro. O livro, no fundo, é só o desfecho dessa luta. É uma cicatriz que, em vez de ficar inscrita no corpo, se inscreve no papel. Para lutar, alimentam-se da insatisfação. “O que sei não me basta ou satisfaz”, escreve Bartolomeu. “Criar, para mim, é a alternativa derradeira para abrandar o peso do não sabido”.
''(...) Literatura é o contrário do aprendizado. O escritor não é um mestre, mas um aluno que luta para escutar a si mesmo. Consegue ouvir alguma coisa, e do que ouve, escreve.Não é muito, e por isso a literatura não oferece grandes respostas. Mas é o bastante para nos abalar.''
Bartolomeu parecia ser um daqueles escritores conscientes, que antes de ostentar algum tipo de orgulho e julgar-se um ''sábio'', colocava-se na posição de alguém que apenas pára e consegue ouvir a si próprio. Eu diria que o escritor e também os artistas, de um modo geral, são pessoas que conseguem olhar para a vida, para as pessoas e para si próprio como se fossem capazes de colocar-se fora disso tudo, «como a Alice de Lewis Carrol a olhar para o jardim e para o coelho apressado através do pequenino buraco da fechadura''.
E mais uma vez, creio ser útil trazer de volta aquela velha frase: ''É preciso idolatrar a dúvida!''
'' Uns dizem que é uma hoste de cavalaria, outros de infantaria;
outros dizem ser uma frota de naus, na terra negra,
a coisa mais bela: mas eu digo ser aquilo
que se ama. (...)''
De linho te vesti De nardos te enfeitei Amor que nunca vi Mas sei ...
Sei dos teus olhos acesos na noite Sinais de bem despertar Sei dos teus braços abertos a todos Que morrem devagar ...
Sei meu amor inventado que um dia Teu corpo pode acender Uma fogueira de sol e de fúria Que nos verá nascer
Irei beber em ti O vinho que pisei O fel do que sofri E dei
Dei do meu corpo um chicote de força Rasei meus olhos com água Dei do meu sangue uma espada de raiva E uma lança de mágoa
Dei do meu sonho uma corda de insónias Cravei meus braços com setas Descobri rosas alarguei cidades E construí poetas
E nunca te encontrei Na estrada do que fiz Amor que não logrei Mas quis
Sei meu amor inventado que um dia Teu corpo há-de acender Uma fogueira de sol e de fúria Que nos verá nascer
Então:
Nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, Nem pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, Nem feras, nem ferros, nem farpas, nem farsas, Nem forcas, nem cardos, nem dardos, nem guerras Nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, Nem pedras, nem facas, nem fomes, nem secas, Nem feras, nem ferros, nem farpas, nem farsas, Nem mal ... ... ...
Deixo-vos a interpretação deste poema de Ary dos Santos feita por Susana Félix. Em 2009, ano em que completavam-se vinte e cinco anos da morte de Ary dos Santos, Susana Félix, Mafalda Arnauth, Viviane e Luanda Cozetti musicaram e cantaram onze poemas do poeta português em sua homenagem. ''Canção de Madrugar'' é um dos textos mais belos de Ary e Susana dá vida a uma interpretação estonteante e visceral.
Nascido em Portugal, de pais portugueses, e pai de brasileiros no Brasil, serei talvez norte-americano quando lá estiver. Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem, se usam e se deitam fora, com todo o respeito necessário à roupa que se veste e que prestou serviço. Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações nasci. E a do que faço e de que vivo é esta raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo quando não acredito em outro, e só outro quereria que este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo, espero envelhecer tomando café em Creta com o Minotauro, sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á. Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida. É metade boi e metade homem, como todos os homens. Violava e devorava virgens, como todas as bestas. Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine, que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue". Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.] Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta, riu-lhe no focinho respeitável. O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras, cheias de ninfas e de efebos desempregados, se cerrarão dulcíssimas nas chávenas, como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque, como toda a gente, não sabe português. Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações. Conversaremos em volapuque, já que nenhum de nós o sabe. O Minotauro não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia, de toda esta merda douta que nos cobre há séculos, cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos os escravos de outros. Ao café, diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha] de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro, teremos nenhuma pátria. Apenas o café, aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil, da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café contudo e que eu, com filial ternura, verei escorrer-lhe do queixo de boi até aos joelhos de homem que não sabe de quem herdou, se do pai, se da mãe, os cornos retorcidos que lhe ornam a nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe, à Palestina, e outros lugares turísticos, imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro, sem versos e sem vida, sem pátrias e sem espírito, sem nada, nem ninguém, que não o dedo sujo, hei-de tomar em paz o meu café.
Ontem, fui assistir a peça ''Abajur Lilás'', interpretada por um grupo teatral português no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra. Trata-se de uma peça teatral brasileira, cujo autor é Plínio Marcos, escritor que escreveu, sobretudo, na ditadura militar. A peça conta o drama de três prostituas que sofrem com as explorações de um cafetão e de um mundo injusto, marginalizado e violento. A peça tem como pano de fundo o contexto da ditadura militar brasileira.
Vale a pena assistir e também ler a peça, que trata-se de uma ferrenha crítica ao regime ditatorial e suas torturas, lançando olhar sobre um assunto que é, comumente, posto de lado, a prostituição. A peça tem ainda uma veia cômica.
'Cá com meus botões', não encontro obra outra na Literatura que me encante tanto e da mesma forma como o primeiro 'livro amado do meu coração' - 'Dom Camurro':
'' Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem águas de toucador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos.''
As descrições rápidas, mas eficazes, feitas de modo quase caricatural, enfeitam esta que para mim é uma das obras máximas da Literatura Brasileira, ignorá-la é como dizer 'não' para o amor, ou manter-se trancado dentro de uma caverna quando o dia lá fora é bonito e tem borboletas. Mas é ainda ignorar uma parte escura e necessária do mundo, onde ressona um silêncio 'casmurro' sob ecos de melancolia e de Shakespeare.
- não preciso nem referir-me ao que penso sobre Machado de Assis, este gênio da Literatura Brasileira. Quando alguém diz-me que não gosta do que escreve Machado de Assis, eu simplesmente pasmo. Faço das minhas palavras as mesmas ditas por Harold Bloom no 'Cânone Ocidental', onde disse que se Machado de Assis tivesse escrito em inglês ou francês, seria um novo Balzac ou até mesmo uma espécie de Shakespeare no romance e em outros gêneros narrativos. Pra mim, ele sempre estará aqui, na minha cabeceira, no meu coração e orgulho-me muito do fato de termos este grande nome na Literatura Brasileira e Lusófona. -
''(...) Agora , por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. (...)''
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Abril Cultural, 1981.