sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Desertos

Infinitas vezes a Terra girou em torno de si.
Infinitas vezes vieram as estações e se foram.
Infinitas vezes passaram-se os dias, os meses e os anos.
Sim, já lá se vai algum tempo.


E depois de tanto andar,
de me iludir e por vários corpos passear,
dou-me conta de que, ao fim e ao cabo,
regresso sempre ao mesmo lugar,
dou voltas e voltas e tudo o que encontro
é este 'inferno de amar'.

Estou em meio ao mar,
numa noite sem estrelas,
completamente só, dentro de um barco vazio
a balançar.
No corpo frio do oceano, refletido e estampado,
como uma maldição, enxergo o teu rosto,
pálido e terrivelmente belo.

Então esfrego os olhos
e a verdade surge como a luz de todos os dias:
permaneço no deserto para o qual me trouxeste
e de onde nunca, nunca mais saí.
Tudo o que tenho vivido são miragens.
Aqui, só há ilusão.

Sob este areal, jaz sepultado o meu coração.
Alcácer-Quibir nunca terminará.
Eu sou Dom Sebastião.

**

sábado, 16 de julho de 2016

ALCÁCER-QUIBIR

Quando penso que então
Chegou o tão prolongado fim
Da batalha do meu coração,
Eis que o areal surge de novo, engole-me,
Sinto as flechas em meu dorso, dor profunda e escuridão.


E não há ninguém que possa dizer
Que está morto D. Sebastião.
A dor de vê-lo partir se repete, a mesma mágoa,
O mesmo gosto na boca, o grito duma nação
Cujo pranto está fadado a se estender.

Mas é diante da morte
Que a verdade se revela,
Aquele que morre e este que espera
São senão a mesma pessoa,
Sou eu o Encoberto, rei sem cama, vela de má sorte.

C. Berndt

12/07/2016

terça-feira, 31 de maio de 2016

NOITE SILENCIOSA

é a noite mais silenciosa que vi

passa por entre as folhas das árvores a névoa úmida e branca
das madrugadas


silencioso
lábios entreabertos
olhos marejados a fitar o Longe
o quão longe no passado eu ainda posso ir?
o quão posso viver eu ainda desse passado,
amargo e doce, como o melhor e o pior dos amores?

o vento segue rumo ao mar
a levar as nuvens e os meus suspiros
poderá ele te falar de novo da minha dor
e da minha insana saudade?

ainda é
teu rosto
pálido e belo como a mais terrível manhã de inverno
que reconheço no céu, nas nuvens, no horizonte

''tu não te cansas de esperar, Penélope?'' - diz-me
a hostil voz da consciência

e eu a ela respondo, tímido
e envergonhado:
esperar já não espero,
mas é à mortalha,
é à mortalha de palavras a quem permaneço fiel,
o que seria de mim, alma lusa,
sem o meu triste fado?


31/05/2016

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Há dias em que a carne endurece,
Entorpece, em que as palavras,
Tantas vezes pétalas, tornam-se pedras.

Então sou mármore, semblante triste esculpido,
Estátua de Michelangelo, olhos de Antígona,
O rosto de Atena esquecido
A mirar o Longínquo, uma ave noturna
Que voa para o meu Olimpo perdido.


sexta-feira, 8 de abril de 2016

Corpo morto

E já lá vai
distante
saindo da baía rumo ao horizonte
o barco branco
a levar o corpo morto
da jovem infante


sobre os seios delicados
alvas margaridas
sobre a cabeça castanhada
uma coroa de tristes violetas

o corpo da moça que lá vai morto
mais gelado que as águas salgadas
do mar
sou eu
é o meu corpo
o corpo de Inês e o de Ofélia
é o corpo de Orfeu

o corpo de quem se perdeu
na vida
e cuja morte talvez fosse uma saída
não fosse a morte a morte

com os olhos marejados de lágrimas
e algas
fico a ver meu corpo
esta que fui
e que jamais serei novamente

amor como aquele nunca mais
nem sorte, nem morte
não há, por fim, Ulisses que possa vir do Norte.

C. Berndt



segunda-feira, 28 de março de 2016

E vamos de Pessoa para encerrar os trabalhos do dia:

ABDICAÇÃO

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu throno de sonhos e cansaços.


Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu sceptro e corôa — eu os deixei
Na antecamara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.



Fernando Pessoa em ''Poemas esotéricos''

quinta-feira, 24 de março de 2016

ainda é o mesmo lago
o lago de narciso

que nos hipnotiza
que nos faz parar em meio ao caos
à dor de noites frescas
sentar no mesmo banco de madeira
reparar no boitatá de ferro
na margem do lago erguido, ser de asas abertas
que não voa

e eu ainda aqui
a sonhar contigo

tanto tempo perdido, não é mesmo?

o lago de narciso
onde se reflectem as luzes dos lampiões urbanos
as luzes das estrelas distantes
as luzes dos nossos olhos assombrados

vejo-me na água
ainda sou o mesmo Orfeu ressentido

a espera d'um milagre
d'um abraço que não virá
do outro lado do mar

pois, não virá a mim o Desejado

as névoas que cobrem esta terra ilhada
não o trarão

nunca mais

e dentro do lago
quem me fita, desterrado,
é ainda o mesmo narciso,
face antiga,
afogada...

***

C. Berndt
18.03.2016

segunda-feira, 7 de março de 2016

luzes...

apago as luzes
de dentro

para que brilhem

as de fora
as que invejo
as que me inspiram


regulus, denébola,
antares, miliphen, sirius
alcyone
e tantas outras que eu não sei nomear

cintilam
flamejam
miram-me
como se fossem olhos
eternos
ternos
internos

que perpassam a distância infinita que há entre nós

olhos de éter
profundos
celestes
amáveis
terríveis

verdadeiro espelho
onde hoje decidi me mirar
quem sabe um dia eu seja também luz

olhos
luzes impossíveis
que me dizem coisas intraduzíveis

apago-me
em paz e em humildade

baixo enfim
o pano de outro dia
em que ando
bebo água
como pão
perdoo
e tento, tento, nunca em vão, aprender a amar,
ao meu ainda escuro coração iluminar.

sábado, 5 de março de 2016

suave
mergulho dentro de mim
tão
delicadamente

que o faço como se estivesse a tocar um copo d'água
com a ponta dos dedos

mergulho

o barulho
de pingos d'água
bolhas de hidrogênio

os meus olhos fechados
só oiço então
os sons leves
sons doces
em sublime harmonia
a balançar como quem beija um filho
as paredes de éter, as cortinas fluídicas
do meu ser balançante

mergulho

sussurros vêm de algum lugar
uma voz muito querida
dizendo baixinho palavras de amor

mergulho

mais fundo
um pouco mais

em busca de mim e de paz

mergulho

não demoro a encontrá-lo
a sentir
as mãos de quem me espera
mãos tão suaves, tão ternas, tão lisas
e firmes
as mãos de um irmão
amigo
amante
meu coração

pouso
no chão
macio que lá existe
e o abraço com força

não
eu não preciso abrir os olhos
eu já o conheço há tanto tempo
tanto tempo

abraçamo-nos felizes
sentindo um o cheiro do outro

o tempo para
a saudade some

somos só nós
em paz
em paz

deitamos n'alguma lugar flutuante e tenro que nos esperava

ouvimos o canto de seres celestes
gigantescas e brilhantes medusas
balançando suas vestes

e ficamos, sim, a sentir nossa pele
a nossa epiderme
arrepiando-se
feliz
como quem diz
você finalmente aqui
aqui
você
aqui

ah,
mas mesmo a mais linda melodia chega ao fim
ao fim

quando eu subir de novo
à superfície
ele me acompanhará
sentindo
sofrendo
a distância surgir entre nós
mais uma vez

e eu ouvirei por muito tempo
o seu triste e melancólico assovio

a me chamar
a me dizer palavras de paciência
a me ensinar a amar e a esperar

esperar
esperar

o tempo em que mergulhar
não será mais necessário

terei voltado para o Mar.



o sol e o garapuvu



desce etéreo e fugaz
no límpido ocidente
o carro de Apolo
majestosamente brilhante
em forma de cruz


no chão, filho de Gaia recente,
sonha o garapuvu adolescente
um dia tocar e compreender
tamanha luz