terça-feira, 20 de agosto de 2013

Vaivém

Nem choro,
nem canto.
Só um ir
e um vir,
incessante,
indiferente.
Onda vai,
onda vem.
Como se a mágoa
e a alegria do mundo
se tivessem apagado.

- Luísa Dacosta em ''A maresia e o sargaço dos dias''.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Asleep

sing me to sleep
and then leave me alone
don't try to wake me in the morning...




que pena,
amor,
eu plantei tantos versos nos teus ouvidos

e nem um
nem um brotinho de poesia sequer
mísera singela pequena que fosse
nada

só os números tontos
os códigos brutos
as camisas de flanela
e o cigarro que tu fumas de um jeito bonito

não amo canteiros onde a poesia não nasce
mas te amo
porque quer queira quer não
é abraçando o inverno
que a gente sonha e cria as primaveras

fica faltando
então
dizeres com a boca
encostada na minha
o que teus olhos de anjo
nunca negaram:

se sou eu um pobre e teimoso girassol
que nasce olhando pro chão
tu és o meu sol
que me abraça
me aquece
e me dá tudo
a terra
a saliva
e o céu.

o tempo come

come os dias com uma voracidade
que assusta
come como uma criança recém-nascida
louca pelo seio da manhã
que está cheio de leite
come como uma fera
que não vê carne há três dias
come avassaladoramente
como o sol que engole sem pena os meteoros
que correm para o seu abraço
come como a mulher do pipoqueiro
que não cabe mais em seu vestido verde
come como hiena desmemoriada
come como um cardume de piranhas
come como a ferrugem
que mata o pulmão dos homens
come como um monstro
cuja garganta é um poço negro sem fundo
come como o escuro
como os medos e
como a noite dos lugares ermos
come como os grasnidos de um lobo
e os assobios de um rouxinol
come como o lamento de um fado
e o suspiro lento de uma viúva

come, enfim, como os versos que o corvo me traz!

o que o tempo não come?
o tempo come tudo,
os corpos, as mentes,
o passado, o presente e o futuro
come o que homem quer
e aquilo que despreza
come a sua memória
e o seus sonhos perdidos...

só não come a si próprio,
só isso o tempo não come.
Não come a si próprio
porque não é mais que um buraco,
um lugar fundo e sem fim
um sopro duro de nada
que é quase quase
o tempo é quase
tudo.

domingo, 28 de julho de 2013

O COBRADOR DOS CACHINHOS

Subo no ônibus
com meu jeito desengonçado
e ele me olha
- nossos olhos se olham.

Tem a pele clara,
ainda que bronzeada pelo sol de março.
Os olhos escuros e meigos
como os de dócil cãozinho.

É magro,
braços e pernas finas
- outro dia
o vi fumando
um cigarro, a olhar distraidamente para o céu.
E os cabelos, ai o cabelos,
são de um negro castanho,
feitos em cachinhos que lhe cobrem a testa.

Aos meus olhos,
assemelha-se àqueles anjinhos
dos afrescos de Michelangelo,
embora seja másculo e sensual,
Parece ingênuo, pronto, é isso - mas só parece.

A verdade é que vejo nele um outro homem,
o homem que amei
O homem que conheci em terras lusitanas,
que passeou comigo
e me mostrou o Porto.
O homem que marcou minha vida e minha pele
à ferro, fogo e saudade,
que me deu o seu corpo
como os navegadores dos quinhentos
se deram às índias e índios.

Enfim, não é nada isso o que sinto
nesta manhã de sol de inverno.
É só procura,
vagar,
anseio por beleza e vulgaridade,
como quer toda a humanidade:
uma vulgaridade
que pareça bela, sublime,
que se prostitua nas ruas
e goze na boca dos homens,
vestida de velas e altares.

O cobrador dos cachinhos
- olha-me mais uma vez,
esconde o sorriso
e mete o desejo
dentro de uma daquelas gavetas escuras da alma.
Posso ver, ele morde os lábios.

Seguimos viagem,
olhando nossos reflexos no vidro
que mostra a vida que corre
e que se encena lá fora.
O dia, a biga de Apolo,
concluirá seu percurso
e, mais tarde,
quando a Noite nos tocar
com seus dedos de veludo
e nos cobrir com sua manta de amargura,
deitaremos os dois sobre nossas camas
e gritaremos amém
quando o orgasmo nos sair,
aliviando os braços,
os nervos, o corpo
- eu a pensar no outro,
como um pobre diabo que não esquece,
ele a lembrar dos meus olhos
que lhe pediam beijos
imaginários.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

OS TRÊS DEUSES MAIS CRUÉIS

Marte,
Deus dos corações humanos,
Dá ao meu espírito a força dos teus braços
para que cruze os campos de batalha
e não morra antes de beijar os lábios de Aquiles uma última vez.

Afrodite,
Deusa enganadora, das falsas promessas necessárias,
Da beleza efêmera e vulgar,
Dá-me o gozo de cada dia
Para que meus pés pisem a terra com menos força
E possa amar mais uma vez.

E tu, Baco, deus dos bêbados,
Dos loucos e dos poetas,
Dá-me o teu desprezo e a tua vaidade
Para que eu possa sorrir
E não seja um outro Orfeu
A perder a cabeça por uma Eurídice qualquer.

Aos três deuses mais cruéis
A vida eterna.
A mim, já me basta esta.





Todos os direitos reservados a Charles Berndt. Não reproduza ou copie, sem autorização, este texto em outro lugar, respeite a lei  9.610 que regula  os direitos autorais e pune o plágio no Brasil. 


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Perder-me-ia

mesmo depois de tanto tempo,
tenho de confessar:

perder-me-ia para sempre
no castanho mágico dos teus olhos,
que é como a cor da terra onde nos amamos
- a Ibéria tem a cor do couro de um boi,
disse um outro poeta. 

perder-me-ia, pela eternidade à fora,
sem contar as horas,
na brancura do teu corpo
que me volta à lembrança 
quando vejo a espuma do mar
que chega à praia nas manhãs mais frias.


hoje,
estou à deriva,
à procura de outros olhos que me abracem,
de um outro mar que me engula,
cansei de ser porto,
atracadouro,
de ver gente passando por mim
e lançando lenços de adeus!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

DESABAFO DE UM POSSÍVEL HETERÔNIMO PORTUGUÊS:

Há muito tempo que já não vivo em mim,
mudei-me para um outro sítio,
onde a vida é pacata, rural e posso sentir da minha varanda
o cheiro do mel
que as abelhas produzem todas manhãs.
É um lugar de silêncios, uma dessas aldeazitas do sul de Portugal,
cercada por extensos descampados e montanhas azuis.

Quem passeia pelas ruas tumultuadas,
cruza as avenidas,
perde-se nos becos,
sobe de bonde até Alfama
e admira Lisboa do alto
são os meus olhos - ninguém mais.
Quem, nas noites solitárias,
sai a procurar casas de fados
são os meus ouvidos - ninguém mais.
E quem bebe café, todas as manhãs,
n'A brasileira é ninguém mais do que a minha boca,
que há muito se calou,
enjoou do gosto das palavras.
As palavras... estas que, no entanto, são produzidas
incessantemente pela minha mente,
este relógio de sete ponteiros e de infinitos tic-tacs…
Ora bem, este é o ‘’meu eu’’ da cidade –
um ser que é nada mais do que sentido,
grito, fome, inconsciência.

Eu, eu-verdadeiramente-eu,
como já vos expliquei,
vivo distante,
em qualquer sítio que não seja em mim.
Pois. Vivo só e bem,
quase que esquecido do caos mundano,
das rápidas pausas para o café,
das buzinas, dos elevadores,
do insistente tocar de sino da Igreja de São Estevão,
que não me deixava dormir na juventude!

Mas às vezes,
só às vezes,
canso-me do canto dos pássaros
e de estar só nas manhãs mornas do interior...
Então, tiro o chapéu do cabide
e apanho o primeiro comboio do dia.
Geralmente, vou primeiro à Belém.
Insisto no velho hábito lusitano de admirar o passado,
a época em que fomos donos do Mar,
desbravadores do Oriente!
Desfruto, por alguns minutos,
da melancolia do velho Tejo,
acompanhado, é claro, pelos navegadores de pedra
que apontam para o sul…
para o mundo que jaz fora da terrinha!
Espero que a manhã cresça
e só assim parto para o centro de Lisboa…
Inevitavelmente, acabo por perder-me nos bairros da alta,
onde admiro os azulejos que insistem, novamente,
em me falar de um tempo que já se foi.
Por vezes, se tenho sorte,
esbarro comigo próprio,
com essa parte de mim que é viciada
em multidões, testemunha dos becos e
da boêmia da cidade.
Conversamos os dois,
pois… bebemos café,
comemos um ou dois pastéis de nata,
falamos da chuva que não chega
e dos discursos do senhor Cavaco,
que insiste em nos dizer
que a crise chegará ao fim…
Por questões de velho e enraizado hábito,
também acabamos por falar mal dos espanhóis,
os nossos irmãos das terras-de-dentro...
Conhecem o ditado
''de Espanha nem bom vento, nem bom casamento'' ?
Pois bem. 
E, se calhar, meus amigos,
se estivermos os dois de bom humor,
tecemos, ali mesmo,
sobre a mesa de ferro da pastelaria ,
alguns versos soltos… poesia de botequim,
dessas que atrai as moscas e cheira a cerveja de ontem
- é assim que nascem algumas das minhas criações,
que alguns dizem – os amigos mais próximos e generosos – 
 tratar-se, de facto, de poesia… de boa poesia!
É evidente que duvido,
ou hesito em acreditar…
Lembro-me sempre das aulas do Liceu
e de um gajo chamado Torres,
 professor de língua portuguesa…
que enchia a boca de saliva  e dizia: ‘’os bons poetas, os herdeiros de Camões, estão todos mortos!’’.
Talvez.
Camões está morto,
mas a sua língua não...
não é assim que cantam lá
para os lados do Brasil:
''gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões''...


Caraças! Já é tarde,
Alonguei-me demais,
tenho de pegar o comboio,
é o último – aquele que só passa às onze horas.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Tempo-novelo.

Foge das minhas mãos
como um novelo que cai
escada abaixo,
rolando,
desfazendo-se, 
desfiando-se,
perdendo-se dos olhos
-olhos que choram de saudade
e melancolia.

Ah, o Tempo!
Ele não volta,
está sempre a cair, cair...
Desfia-se tudo: dias, noites, pessoas
e até o céu.

Mas fica,
fica o gosto do café,
o cheiro do perfume,
a fumaça do cigarro,
o fado ouvido pela primeira vez,
o homem da barba por fazer.
E só com a morte
e talvez nem com ela
se percam e se esqueçam
as lembranças.

Desabafo veraneio.


Raros são os verões dentro de mim.
Gosto das épocas amenas
em que o Sol não se aperta contra a gente
e o frio não nos congela quando a lua desvela sua face pálida.

Contudo, quem pode evitar o inverno?
Quem pode se ver livre das noites frias e solitárias
em que os únicos amigos e sorrisos
são o gosto do chá e a página de um livro...?

Mas o verão e seu calor exagerado
- suas areias queimadas e seus corpos suados-
faço questão de os pular e esquecer...

Assim,
o outono me é quase eterno
e as andorinhas, coitadas,
só me chegam na Primavera
- floridas, cheias de sede e versos.