sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

por estes mares tantas vezes navegados...

dormes delicado
profundamente
os teus suspiros materializam-se e tocam minha epiderme
os teus lábios semiabertos pedem-me, mesmo estando entregue a Morfeu,
um beijo de amor


dormes sobre os meus lençóis
entregas o teu corpo a mim
ao meu deleite e ao meu cuidado
não diferente do que faço, entregando-me, deixando-me
perder no mar vasto que és tu

e como nauta
Vasco da Gama pós-moderno
sigo por estes mares tantas vezes navegado
ciente de que logo ali, em frente
posso esbarrar
no Adamastor amargurado

mas que seria eu
que tipo de homem seria
se deixasse de navegar simplesmente por medo
de naufragar sozinho?

ao menos
terei possuído parte ínfima do mar
o que é uma doce ilusão, eu sei
mas é assim que vivo
com uma cruz de amor desenhada no peito
sonhando com um mundo fraterno
e que todos os beijos nossos sejam sempre ternos

passar pelo Cabo das Tormentas
é necessário
para que ele se torne, quem sabe
o Cabo da Boa Esperança
que por o termos cruzado
conheceremos, talvez
laivos de amor verdadeiro
e a dança
dos corações felizes
das almas humildes
os rostos iluminados

e o rei tantas vezes esperado
talvez seja de fato verdade
el D. Sebastião, essa alegoria agridoce
cheia de saudade
que inventamos pra mudar as coisas
transformar nossas vidas
acreditar que é possível

dorme
por enquanto ainda tenho força pra girar o leme
o mar está calmo
e o Horizonte, brilhante,
enche meu corpo de fé
as névoas que teremos de cruzar estão distantes
quem sabe se desfaçam diante das nossas vozes

quem sabe façamos as Iras dormir
e as convertamos em doces ninfas do Atlântico
a velar
nosso cântico, a remar esse barco de carne
e afeto.

***

C. Berndt
16/12/2015
brilha no céu o Sol
da piedade divina
a iluminar nossas delicadas vidas
mesmo sendo a Terra ainda tão parca guarida
tão cheia de misérias e feridas

brilha o Sol da amizade
da beleza, da santa humildade
do amor fraternal e sublime

entrega submissa
que é teu corpo deitado sobre o meu,
jovem Orfeu

candelabros se acendem por todos os lados
luzes e formas fálicas surgem na floresta
do breu

brilha, brilha
calor que incendeia e contenta
tanta ternura
que emudece

e em meu peito resplandece
uma estrela azul de seis pontas
onde dentro há uma cruz
da cor violeta

brilha no céu o Sol do Amor
que põe fim à violência
e me faz acreditar num mundo sem dor

deita então em meu colo,
Jacinto,
amigo, antes que venha a morte,
cantarei para ti,
eu que sou filho de Apolo,
querido das ninfas e da sorte,
acenderei as luzes do corpo
e te levarei ao céu, ao céu

onde será canto nobre e excelso
os gemidos e gritos
que dermos ao norte

reverberado-nos em prazer
em prazer
em prazer
em prazer

num doce, doce

vai e vem

como ondas

e luz no infinito!

***
C, Berndt
10/12/2015 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Volúpia (Florbela Espanca)



No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...


Florbela Espanca, in "Charneca em Flor"

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

(des)encontro

talvez um dia te encontre, por aí
há de ser um reencontro, contigo e comigo próprio


tantos séculos depois, quase nem acredito, little boy,
aquela separação ainda me dói

desde miúdo te sinto, amigo etéreo
abraças-me invisível e eu te quero
sentir
com esse meu corpo incerto
essa gaiola, máquina, concha
olho para o céu, lembro do Ícaro que fui e ainda me desespero

talvez um dia tudo isso ganhe uma outra cara
outro tom ou forma-desejo
bem poderias vir aqui, possuir, alma austera,
aquele rapaz bonito da esquina e me dar um beijo de matéria

ok, estou a ouvir:
o espírito
a consciência
o éter
a leveza
a caridade
o mundo verdadeiro, não o das cópias e aparências,
eu sei...
a espera, a espera

quando eu era miúdo
eu já te sentia, sabia quem eras
a saudade sempre me foi essa coisa grande,
voraz, tristeza de alma e um andar sem força nas pernas

hoje eu vi nuvens branquíssimas
rumando com calma para o sul, algum lugar azul
ah, como eu quis ser elas

e no lago idílico
eu tentei ver meu rosto,
nada vi, nada vi
eu não sou esse corpo

o dia termina e eu vou dormir
a pensar que enquanto não chegas
que enquanto não parto
eu aqui fico
a mentir
a morrer
a tentar, por delicadeza, o pão e a bondade dividir
a esperar que a aurora me descubra
e seja, amigo,
o fim, o fim desses estranhos milenares conflitos

ainda que 
tudo isso seja bonito
devido ao nosso (des)encontro infinito!

***

C. Berndt
29/11/2015


domingo, 29 de novembro de 2015

Já sobre a fronte vã se me acinzenta
O cabelo do jovem que perdi.
Meus olhos brilham menos.
Já não tem jus a beijos minha boca.
Se me ainda amas, por amor não ames:
Traíras-me comigo.

Ricardo Reis, in "Odes"
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

sábado, 28 de novembro de 2015

caminho de Santiago



sigo o caminho do peregrino, a via sacra de terra,
comecei pelo ópio, mas antevejo a salvação

é noite e meus olhos castanhos miram o céu com admiração,
colcha negra manchada de esperma,
esperma divino, é certo,
qual dos deuses terá sido o autor da imensa ejaculação?


e no norte gélido vejo a Ursa mãe,
brilhante constelação,
guardada pelo boieiro desumano,
que em sua rouca voz de animal diz ao filho que não mais a reconhece:
o amor de Zeus nos condenou, a ira de Hera verteu nosso sangue,
destino arcano!

fecho os olhos então
e já não mais estou
no norte do atlântico,
mas no sul sidéreo, onde quem brilha na noite é o crucifixo etéreo,
teu corpo sob o meu é agora como a colcha que o deus sujou,
entre as estrelas negras que são teus sinais, surge como mágica, cândida,
esplêndida,
gigante e brilhante galáxia, obra efêmera,
delícia da carne e da paixão,
caminho de Santiago nascido da minha ejaculação!

***

C. Berndt

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Eu: Zeus, volúpia, fome, astúcia.
Tu: Ganímedes, delicadeza, sensualidade, beleza.

Eu deveria te raptar, sim.
Mas é preferível que tu venhas até mim.
Adormeça agora o teu corpo e, liberto dos grilhões da matéria,
voe, venha, estou aqui.


Hoje, dá-me o ânimo, o espírito.
Amanhã, dá-me o pão, que é teu corpo.

Estará completa a Eucaristia
quando depositares em minha boca
o vinho e o gozo
dizendo-me contente: o corpo de Cristo.

***
C. Berndt
12/11/2015

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

FOGO-FÁTUO

os meus olhos no Horizonte fixos
num mar infinito, doloroso, de muitos crucifixos
em peitos de poetas
e vidas de homens e mulheres
fincados
à força,
no Horizonte infindo,
eu vi, nesta noite incauta,
translúcida,
encoberta de poesia e silêncio,
eu vi, sem nuvens, longe, pulsante, vivo, no Horizonte,
o fogo que corre, o fogo fátuo, quente,
eterno, vibrante,
nascido das florestas de ontem,
ancestrais,
onde
antes, do tempo, havia o nada,
sem voz e frio,
eu vi, qualquer coisa no cio,
pronta para me engolir,
sentir, tocar, masturbar,
do inferno e do céu vir
para me mostrar qualquer coisa de eterno
e fugaz,
eu vi, lá,
no fim, sem ar,
onde há o azul e tudo é quase negro
e o sóis pura melancolia,
eu vi, lá,
o que um dia os povos primeiros
da América, desta terra,
puro degredo,
terra roubada, violada, ferida,
que antes tinha outro nome, nome esquecido,
por certo,
a luz, a vontade, o facho, a luxúria, o sonho, a ira,
o falo, a espada, o útero,
de um deus, sujo, impuro, humano,
quente, ardente,
tonto, incoerente,
brilhante, eu vi, verdadeiro carcará,
a circular, a voar,
a me chamar,
aquele
que eles
chamavam boitatá,
a face de um homem,
do demônio,
do futuro, olhos de mercúrio,
perjúrio,
eu o vi, fantasma, espectro, destino,
onda, raio solar,
doce sensação dos corações que amam,
eu te vi, engano,
luz maldita
ou bendita, não sei o que é pior,
eu te vi,
no Horizonte,
serpente,
distante, muito distante,
infelizmente,
perdendo-se, caindo, sumindo
para sempre,
sem nunca nunca nunca
pisar o chão novamente
e pedir-me, dolente,
cansado, contente, perdão,
perdão, amado, querido, odiado
D. Sebastião.



C. Berndt

EURIDICE (Miguel Torga)

Agora,
São as Fúrias
Que me dilaceram.
O que de ti me deram
Os deuses infernais,
Não era teu.
Sombra dum sonho que já não vivias,
Em vez de iluminar, enegrecias
O caminho de Orfeu.

E fitei-te nos olhos, luzes mortas.
Caronte abrira as portas
Da minha perdição.
Todos os condenados,
Libertados
No momento supremo do meu canto,
Regressavam ao pranto
Da condenação.

E eu próprio ia arrastar
A minha pedra de desassossego.
Eu próprio ia ter sede
E fome, eternamente.
Eu próprio recebia,
No espírito e na carne,
O beijo enraivecido
Das Iras,
Que não perdoam a nenhum mortal
As divinas mentiras
Que o amor desmascara, por seu mal.


Miguel Torga em Orfeu rebelde. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

PARA O DIA DOS ''MORTOS''

E dizem as vozes do Além-túmulo:

Mais mortos estão vós.
Presos à gaiola orgânica, podeis ver tão pouco, sentir tão pouco,
compreender ainda tão pouco.


Quando, enfim, se rompem os grilhões
e voltamos à Pátria do Espírito,
voltamos ao nosso estado natural,
os ouvidos então se afinam, a visão se desentorpece,
o véu que encobria a memória milenar é desfeito como fumaça
e o passado nos surge diante dos olhos, tudo se torna mais claro.

Aqui, deste lado, somos mais vivos, mais livres e mais conscientes.
Aqui está a vida.

A Terra, portanto, é nada mais que
estação, escola, temporária prisão,
rio onde vamos, repetidamente, enquanto ainda precisamos,
lavar-nos de nossos erros e vícios,
aprender a amar, a limpar e semear o bem nos corações.

Não chorai pelos mortos nesse dia que atribuís aos mortos.
Não há morte.
O Universo é onda, movimento, fluxo constante,
eternidade,
nada está parado, estagnado, em desuso ou abandonado.

Chorai, sim, pelos que ainda vivem sem se dar do conta do amor,
lei universal da qual ninguém pode fugir.

Pode-se dizer que viver sem amor,
seja na Terra ou em qualquer outro lugar,
estando encarnado ou desencarnado,
é a única experiência de morte que existe.
A ignorância, o ódio, o orgulho e o egoísmo fazem de nós árvores secas, ervas daninhas, ou mesmo uma grande porção de terra ociosa, abandonada, preguiçosa.

Amar é crescer, movimentar-se, libertar-se,
auxiliar a Providência em seus desígnios
e tornar-se, pouco a pouco,
merecedor da Felicidade a que todos estamos destinados.

Lembrai do que vos disse São Francisco,
espírito humilde, desapegado e amigo:
''Morrer é viver para a vida eterna''.

Não chorai, não chorai.
E sobretudo não temais a morte.
Morrer só é sinônimo de sofrer quando chegamos aqui,
do lado da Vida, na Terra do Espírito,
de mãos vazias,
sem obras, com as sementes todas desperdiçadas
e nenhum jardim semeado.
É então que temos de retornar
e mais do que morrer, mais do que o corpo físico perder, dói ao espírito ter de na Terra novamente nascer.

Portanto, aproveitai o tempo,
não desperdiçai a vossa encarnação,
aprendei o quanto antes essa lição
e as dores se dissiparão,
exercitai o perdão, a compaixão,
não deixais de dividir o pão
e sobretudo de amar, de amar como amas a ti
o teu irmão.