sábado, 26 de setembro de 2015

O poeta é (está) só.
Esse é o seu segredo, o seu fado, a sua vida, a sua morte.
Ser só, num mundo em que todos andam juntos e não estão em lado algum.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

procuro
nesta noite incauta
fria
de margaridas congeladas no jardim
uma canção, um poema, uma palavra


um gesto
um passo
uma sílaba ou melodia
que me devolva o sossego
a paz que há uns dias perdi


folheio
livros e papéis velhos
há de haver algo aqui, um verso
uma lembrança, uma saudade
qualquer
sedativo


nenhuma das vozes habituais
pode
me consolar
nem Camões nem Pessoa nem Sophia
nem Florbela, minha amargura preferida


reviro-me
tento me despir dessa pele de gelo
e medo
que cobre meus pelos
uma dor


o inverno nos enganou
agosto foi quente e doce
muitos dias de sol e mudas de amor-perfeito
plantadas no vaso frágil da minha vida


mas veio setembro
e como são tempos demoníacos
tudo mudou e a luz da ternura se desacendeu


partiste
cometa de cauda longa
rastro luminoso
rota difusa
e corpo dissonante
suave serpente de libido sibilando prazer


e cá fiquei então
em pedacinhos
a tomar chá
sozinho
amando novamente como nunca quis


procuro
no silêncio robusto
desta noite invernal
os teus olhos o teu corpo o teu cheiro
frio é o inferno sem ti


estes versos
que são como vômito
escarro
ou pranto magoado de orgulho
não me consolam
nem fecham a ferida que abriste


sangrarei por muitos séculos
ainda
até que no maledicente céu das vivências
nasça outro cometa
e o meu corpo gelado e inerte acostumado
aos ventos e à ausência
desperte
em lava e gemidos
contente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

IL PLEURE DANS MON COEUR (Paul Verlaine)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur?

Ô bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie!


Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison?
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine!

domingo, 30 de agosto de 2015

manhã de sol amena
e meiga
é teu rosto, o primeiro que vejo
quando abro os olhos

mar liso, ondulante
e lascivamente inocente
é teu corpo tão entregue a mim, seminu
e adormecido

nuvens brancas de paz e reconciliação
são os nossos lençóis
embrulhados
entre nossas pernas, sinto os teus pés, como são lisos

Primavera que chega e ilumina
o quarto com luzes descansadas
é o amor novo que me trouxeste

levanto-me devagar, o beijo demorado na tua boca
é fôlego para o meu dia

fica a dormir, querido,
quando for noite eu trarei lírios e te despirei
como quem limpa um frágil aquário

dentro de ti, em ti, nadarei
entre corais e medusas pacíficas,
teus pelos se arrepiam e eu estou quase lá

adormecidos
vamos andar de barco no grande rio do espírito,
tu tens os remos,
leva-me ao Mar.

sábado, 29 de agosto de 2015

será que amar
é mergulhar de novo
profundo e delicadamente
no verde esmeraldino
do Atlântico
que se reapresenta a mim
através desse par de olhos novos
que encontrei em dias invernais?


será que amar
é mesmo possível
como antes
e ver as gaivotas poisando na praia
e caminhar catando conchas
e olhar as tuas sardas como se fossem
a Via Láctea
e beijar teu dorso, apertar tuas pernas,
sentir teu corpo leve se abrir para mim em prazer revelado
e sincero?


será amar
ou é o mar
do desejo
que, por sede, sempre nos está a empurrar
para a frente, para alguém,
em suas marolas há corpos de gente,
o meu e o teu, enrolados agora
em lençóis brancos acetinados
numa quinta-feira à noite, nus sobre a cama ainda fria,
carentes de quentura, prontos para a guerra?

será?

domingo, 23 de agosto de 2015

Nuit nue

O, nuit nue,
Te regard avec mes yeux
viciés e ma visage
ennuyée


O, nuit sombrie,
Te veux avec mon âme
pleine de songe
que vibre encore

O, nuit irrémédiable,
te vois triste
mais je t'aime
même ainsi

O, nuit sans fin,
sans malheur
sans brille
calme et langueureuse

O, nuit longue,
que le vent t'insuffle
sa magie unique
dans son rugir

-- Hamilton Alves em ''O cão noturno''.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Os lírios brancos.

Os lírios brancos que vês nos campos,
Nos prados amarelados do Alentejo,
Onde vais aliviar teu espírito desenfreado,
Sou eu, o meu corpo,
A delicadeza que sou, a paz que vislumbro,
O amor que sinto por ti,
A morte que não é nada senão brisa que transpassa
E nos separa momentaneamente.








terça-feira, 11 de agosto de 2015

MIRAGEM



aves de rapina num céu azul celeste
o sol forte mas ameno do solstício de inverno
iluminando a crosta sul da Terra

e eu
caminhante eterno
pernas que se afundam na areia fina
das dunas brancas etéreas
que se estendem por boa parte de Garopaba
sinto-me perdido, perdido no deserto

vertigem
as minhas pernas falseiam, a luz se torna opaca
miragens, imagens turvas da mente, tempestade de areia
as coisas giram

volto a mim
já não estou no sul da pátria do cruzeiro
o mar se foi
só vejo o Nilo

a minha pele já não é branca
mas morena, como o cobre
os meus olhos agora são estreitos e as pupilas negras, felinas
falo uma língua que não existe mais e
digo com força e orgulho:
KEMET!

escravos persas constroem um novo templo, lapidam paredes
o faraó está ao meu lado, digo-lhe nessa língua estranha
palavras que significam:

''Filho de Hórus, mal foi revelado, Atón já tem inimigos!
Seth, o deus escuro, aquele que ainda habita os corações humanos,
não descansa!''

O faraó não me ouve, está longe, em transe
o disco solar fala consigo
no norte, no entanto, falcões, os falcões de Amon!

aves de rapina num céu azul celeste
meus olhos se fecham como se pesassem o mundo
o entardecer se aproxima
sinto força novamente em minhas pernas, voltarei para casa

o meu coração flutua então mais leve
desço o caminho que me levou às dunas
o mar está calmo, quase sem ondas
penso: 

viajar no tempo nos dá ânimo
um certo sentimento de liberdade, asas
como as têm as aves
que voam por sobre a terra, por sobre as águas
do Nilo, do Atlântico...

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

GLÁDIO - Fernando Pessoa


A Alberto Da Cunha Dias


Deu-me Deus o Seu Gládio, porque eu faça
A Sua santa guerra.
Sagrou-me Seu em génio e em desgraça
As horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou‑me
A fronte com o olhar:
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-justiça são Seu Nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do Gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha Alma!



Orpheu, nº 3. (Lisboa: 1916) (Preparação do texto, introdução e cronologia de Arnaldo Saraiva.) Lisboa: Ática, 1984. - 35.

domingo, 2 de agosto de 2015

ÀS VOLTAS

às voltas

espirais sobre o teu corpo-fantasma

avenidas desertas e um cão noturno
a latir
música para meus ouvidos


sinal vermelho ou sinal verde
não importa, não há ninguém nesta via

às voltas sobre mim

palavra encanto
que ainda reverbera
feitiço
ou porta sem chave para ser fechada

espera

a mentira é uma inexatidão, Ricardo Reis, eu sei

às voltas sobre um cadáver que não existe, abutre

braço amputado que coça, formiga,
que se ergue para te tocar

fadiga.